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19 de julho de 2014




A POSSIBILIDADE DE FAZER MEDIAÇÕES SÓCIOPSICOLÕGICAS E ÉTNICAS (DECODIFICAÇÕES, TRADUÇÕES, CONVIVÊNCIAS) EM PSICOLOGIA COMUNITÁRIA NA PERSPECTIVA DA AMÉRICA PROFUNDA.
Cezar Wagner de Lima Góis[1]
Luciane Alves de Oliviera[2]
Sara Cavalcante Góis[3]
Alexsandra Silva[4]
RESUMO
Nesse artigo problematizamos a aproximação da Psicologia Comunitária com a ideia de América Profunda, considerando-a capaz de contribuir por meio de mediações e traduções na construção de conhecimentos e na recriação da vida social, étnica e humana como diversidade local. Buscamos clarificar a questão desde o olhar da libertação e das epistemologias do sul, e apresentar experiências que afirmem esse modo de fazer Psicologia Comunitária. Tratamos da colonialidade relacionando-a com o que fazer em Psicologia Comunitária e enfatizamos a importância da mediação sóciopsicológica/étnica, das traduções de olhares, e os aspectos que constituem essa mediação: o dialógico, o vivencial e o participante. Para finalizar essas reflexões, relatamos de modo breve algumas experiências de facilitação e de pesquisa realizadas por nós no Ceará, especialmente na capital, Fortaleza, e no município de Sobral.
   Palavras-chaves: Psicologia Comunitária, América Profunda, mediação, sujeito da comunidade.
1. INTRODUÇÃO
Pensar a Psicologia Comunitária na realidade social de hoje é reconhecer a pluralidade, considerar a diversidade epistemológica. Não há possibilidade de seguirmos por caminhos de colonialidade (Quijano, 2010). Esta, proveniente do colonialismo, se refere a um aspecto grave do padrão mundial do poder capitalista imposto ao mundo, caracterizado por classificações raciais/étnicas como base para esse padrão de poder operar no mundo por meio de dimensões materiais, sociais e subjetivas, inclusive epistêmicas. Em Psicologia Comunitária implica assumir outra atitude epistemológica, aberta às cosmovisões locais e baseada nas epistemologias do Sul (Sousa Santos, 2010), e da libertação (Dussel, 1977; Martin-Baró, 1998; Freire, 2011). Cada povo, cada comunidade social, tem seu modo de vida e seu próprio saber, o qual pode traduzir outros e ser traduzido por estes. Isso significa reconhecer e aceitar a pluralidade étnica, social e epistêmica, e não mais permanecer no olhar da colonialidade, que a tudo traduz e nos entrega sempre como o válido e o verdadeiro. Compreender também que essa tradução no interior de cada povo e classe social, ou entre povos e classes sociais, com possibilidade de recriação a partir daí, se encontra numa condição mediadora complexa, numa abertura dialógica, afetiva, ética e transdisciplinar.
Nesse olhar podemos reconhecer o rosto antigo, escondido, humilhado, mas que resiste e é criativo (Kusch, 1986; Dussel, 1977; Menezes, 2006; Martin-Baró, 1998; Freire, 1979). É o rosto dos povos originários, dos quilombolas, dos mestiços e afro-descendentes pobres, rosto que resiste e perdura nos países atuais da América.
Nessas condições historicamente dadas, fazer mediações, traduções entre as cosmovisões, os pensares, em espaços de convivencialidade (Boff, 1999) implica, por um lado, reconhecer a grave desigualdade étnica e social, e por outro, considerar a possibilidade de mediações, sem desconsiderar o protesto e o confronto como meio para se chegar à negociação e à convivência democrática entre os diversos da América.
Diante dessas questões atuais, o desafio que surge para a Psicologia Comunitária na América Profunda é o de facilitar processos de mediação psicossocial/étnica que contemplem decodificações, traduções e convivencialidade no interior de uma sociedade e/ou entre povos, trabalhar com a população pobre (mestiços e afro-descendentes em geral), também por fora das políticas públicas, e aproximar-se mais dos povos originários e quilombolas.
2. AMÉRICA PROFUNDA
Contrapondo-se à América dos colonizadores, encontramos as ideias de Ameríndia (Dussel, 2010) e de América Profunda (Kusch, 1986). Ambas estão relacionadas com os povos originários. Entretanto, não podemos negar o processo civilizatório pós Colombo, porém é preciso considerar nessa questão a palavra profunda como a característica central do que hoje é a América, diferentemente da ideia de América Profunda apresentada por Rodolfo Kusch. Dar-lhe outro significado, que se traduz como aceitar a pluralidade, o mais antigo (povos originários), o conquistador (povos europeus), o traficado (povos africanos), o quilombola (remanescentes dos povos africanos que vivem em Quilombos), o afro-descendente e o mestiço das sociedades atuais, como uma realidade histórica que está aí e que pode significar o solo para uma consciência americana plural e libertária, mais de democracia do que de dominação, exploração e pobreza (Cidade, Moura Jr. & Ximenes, 2010). Uma utopia, um horizonte ético-político referente para os passos atuais, para a recriação epistemológica e a possibilidade da convivência democrática.
 3. PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E AMÉRICA PROFUNDA
O que buscamos em meio a essas questões de fundo é fazer uma Psicologia Comunitária (Góis, 2005; Ximenes & Góis, 2010) cada vez mais ciência do sujeito comunitário e da mediação sócio-psicológica e étnica, um meio para se construir e se reconstruir conhecimentos em meio à pluralidade de saberes e de práticas, bem como favorecer a expressão e fortalecimento de identidades pessoais, sociais e culturais.
Entendemos que a Psicologia Comunitária é capaz de fazer mediações (decodificações, traduções e convivências) nos espaços das comunidades, tanto no sentido da construção de conhecimentos (acadêmicos, profissionais e populares), como no sentido da facilitação de processos sóciopsicológicos e étnicos que contribuam para a recriação do indivíduo em sujeito de sua vida e da comunidade. Compreender a Psicologia Comunitária na América atual é revirá-la para aprumá-la no rumo das epistemologias da libertação, das epistemologias do sul, da potencialidade e potência inerentes à própria localidade social e étnica, comunitária.
Trazer essa questão para o interior da Psicologia Comunitária é apoiar-nos na possibilidade de reconhecer, acercar-se e implicar-se no universo local para decodificar, mediar presenças e convivências, facilitar traduções e compreensões entre práticas e saberes locais de uma mesma cultura ou de distintas culturas e subculturas presentes nas comunidades e em suas relações com outros lugares, até mesmo de outras etnias, com os saberes das diversas disciplinas acadêmicas e áreas profissionais que tentam uma aproximação para agir nas realidades comunitárias.
A Psicologia Comunitária pode lidar com mediações de saberes, de sentidos, de sentimentos, de ações e de recriações solidárias do humano, do cultural e do social, de facilitação de processos nos quais os indivíduos criam a si como sujeitos individuais portadores da condição de sujeito coletivo (Touraine, 2007).
Posicionar-se na mediação é se implicar com indivíduos e grupos para com eles construir conhecimentos e ações por meio do diálogo, da vivência e da ação-participante. O diálogo como meio de aproximar e aprofundar significados e sentidos (Freire, 1994); a vivência como caminho de expressão de sentimentos (Toro, 1991) e de construção de sentidos, de estar com o outro no mundo; e a ação-participante (Fals Borda, 1978) como presença do sujeito individual e equidade de saberes. Diálogo, vivência e ação-participante são constituintes de um só processo de mediação onde ciência e política não se separam..
4.    RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
À guisa de pequenos relatos, apresentamos a seguir algumas experiências de mediação referenciadas nas epistemologias do sul e da libertação. Mencionaremos: Método clínico-comunitário; Lagamar - a luta pelo direito à cidade; Dialogando sobre a longevidade em Sobral; Um panorama das crianças e jovens da periferia: entre experiências, reflexões e tessituras; e, por fim, Jovem, violência e participação comunitária.
. Método Clínico-Comunitário
O método é dialógico-vivencial-ativo e foi inicialmente aplicado em um bairro da periferia de Fortaleza. Contém quatro estratégias metodológicas básicas entrelaçadas.  
. Inserção e ação na comunidade
            O profissional se envolve nas principais questões ou problemas vividos pela população, os quais são claros e frequentemente debatidos nos encontros comunitários. Ele deixa de ser um técnico fechado em um único local de atendimento para ser um profissional ativo que participa da vida da comunidade.
            . Prática Clínica - Terapia pelo Encontro
É uma terapia popular em grupo Góis (2012), uma prática clínica de prevenção em saúde mental. Tem como objetivo facilitar processos existenciais que permitam ao morador superar ou evitar que o sofrimento lhe impeça de melhorar sua vida e a vida da comunidade. É formada por quatro linhas de facilitação que se mesclam continuamente e se separam em certas condições do processo do grupo. Isso quer dizer que no processo de uma sessão pode-se passar por todas, por três, por duas ou por uma só das linhas de facilitação. A primeira e a segunda linhas estão relacionadas com a fala profunda, quer dizer, a fala que vem do próprio fluxo de vida de quem fala, é expressiva e envolve ou atrai a quem está escutando; é reveladora do que a própria pessoa sente e pensa a respeito de si e do mundo. Dar-se quando o morador fala de seu sofrimento e de sentimentos positivos também presentes em meio à sua dor, isto é, acontece quando ele fala de si e também quando dialoga com outros sobre como vê o mundo e o que poderia fazer para melhorar sua comunidade. Quando a fala é narrativa de vida, a pessoa fala dela mesma, chamamos de fala existencial; quando se fala do mundo é problematizadora. A fala existencial e a fala problematizadora constituem a fala profunda. A terceira linha de facilitação é a dramatização (Moreno, 1990; Boal, 2002). O ato dramático é um meio de retomar vivências gravadas na história individual e coletiva, trazê-las ao presente como vivência do presente e não do passado, facilitando ao participante a condição de protagonista e espectador, com outros, de si mesmo. Cria o distanciamento necessário à manifestação da consciência do vivido, em que o material psíquico acumulado por repressões é transformado em instante vivido e elaborado como realidade presente.
A quarta e última linha de facilitação é a vivência, a qual nos traz de forma cristalina a qualidade do vivido. Surge da intensificação sensível e amorosa do corpo através da dança, de uma relação íntima corpo-mundo, uma corporeidade vivida (Merleau-Ponty, 1993), pulsando a partir de um mundo corporal, expressivo e relacional. O instante é vivido com grande intensidade pela pessoa e envolve, além de processos subjetivos, a sinestesia, a motricidade, as funções viscerais, as emoções e os sentimentos (Toro, 1991).
. Integração da prática clínica com atividades comunitárias, políticas públicas e terceiro setor na comunidade
            A prática clínica está imbricada na dinâmica comunitária, fazendo parte de um todo que denominamos de vida comunitária. O participante da prática clínica tem a oportunidade de também participar em outras atividades na comunidade, já que a clínica não acontece de forma separada da luta dos moradores, da vida em grupos solidários nem do apoio social informal (Oliveira, 2003) tão presente nas comunidades. Tampouco separada das políticas públicas presentes no lugar.
            . Lagamar - A luta dos moradores pelo direito à cidade
            Morar nua cidade em franco crescimento e de especulação imobiliária é algo desafiante para a população pobre, uma situação que na maioria das vezes os moradores são transferidos para lugares mais distantes, de acesso difícil. São mal indenizados e, por isso, é comum não terem condições para comprar uma casa nesses lugares indicados para a remoção deles. No Lagamar, área de um bairro de Fortaleza com uma população de 12.000 moradores, em geral mestiços e oriundos em sua maioria do sertão do Ceará, situada em um local de grande valorização fundiária, isso iria acontecer.
Do Plano-Diretor da cidade, que foi enviado para a Câmara de Vereadores de Fortaleza, foi retirada a definição do Lagamar como Zona Especial de Interesse Social – ZEIS, medida que levaria os moradores a uma completa desproteção social, urbana e fundiária. Sem ser ZEIS, os moradores do Lagamar correriam o grave risco de remoção. A maioria das lideranças tradicionais da área estava desiludida, em razão do boicote que Prefeitura e Vereadores realizavam, deixando as lideranças desinformadas e impotentes.
            Partindo dessa situação, algumas lideranças da Fundação Marco de Bruin, criada pelo antigo movimento popular do Lagamar, procuraram a nós com o convite para trabalharmos juntos no sentido de reverter a situação e garantir aos moradores o direito ao lugar.
            O trabalho com os moradores se pautou por mediações dialógicas, vivenciais e participantes, inicialmente entre eles, já que a área estava social e politicamente desorganizada para qualquer luta comunitária. Inúmeras reuniões, círculos de cultura, vivências, encontros em quarteirões e expressão da arte popular foram realizados ao longo de 04 meses, diariamente. Daí se descobriu o caminho de andar com determinação, uma marcha popular para chegar a Câmara dos Vereadores e ocupá-la sem violência até que a questão fosse resolvida. Foi um passo importante e decisivo, realizado por crianças, jovens, adultos e idosos. Outros passos foram necessários, novos encontros, reuniões, círculos de cultura e vivências, e mais duas marchas realizadas em direção a Prefeitura da cidade de Fortaleza.
            Um projeto de lei foi criado em conjunto Moradores-Prefeitura, todo negociado em comissões populares e técnicas, ponto a ponto, e enviado para a Câmara dos Vereadores. Diante de uma comitiva de moradores, o projeto foi aprovado na Câmara, definindo assim o Lagamar como zona especial de interesse social, prioridade para investimentos públicos na cidade, regularização fundiária e proteção contra a especulação imobiliária.
            O processo de mediação moradores-moradores na comunidade foi rico em criatividade, sentimentos, ações, enfrentamentos entre eles, negociação e cooperação, trazendo à consciência de inúmeros moradores a dignidade e a capacidade de luta, antes bastante enfraquecida.
Dialogando sobre a longevidade em Sobral
A expectativa de vida aumentada em diversos povos advém de diferentes fenômenos, que mesmo permeados de diversas contradições, sem dúvida é um ganho civilizatório impar na espécie humana (Oliveira, 2003). Mesmo considerando as diferentes formas de envelhecer numa realidade de desigualdade como a nossa, onde tal processo vivido por pessoas de condições de vida mais abastadas é diametralmente distinto do vivido por pessoas de vida sofrida, empobrecida e reduzida de possibilidade. Urge pensar o envelhecimento em sua condição coletiva, inserido num contexto social, cultural, econômico e étnico. Tais concepções sobre a longevidade estão presentes no Laboratório de Estudos sobre a Longevidade – LAELON, curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. 
Uma experiência nossa a partir dessas preocupações foi a do I Fórum “Dialogando sobre a Longevidade”, ação do projeto de extensão “Vida longa e feliz para todos” em Sobral, município de 197.613 hab, sendo 13.944 idosos (IBGE, 2010). Na maioria dos municípios brasileiros, as discussões e ações nas temáticas da longevidade humana eram reduzidas e fragmentadas, isoladas de uma percepção mais ampla da vida municipalidade. O interesse do fórum era suscitar a temática da longevidade a partir da seguinte constatação: Estamos vivendo mais, envelhecendo, e o que estamos fazendo ou planejando para que nossa cidade seja favorável para que a vida seja longa e feliz para todos? Necessitávamos iniciar uma problematização sobre o direito de continuar vivendo com qualidade mesmo vivendo muito? É possível vencer o preconceito e o desconhecimento sobre o processo de envelhecer, enfrentar os desafios nos diversos âmbitos e setores da sociedade, tais como saúde, educação, assistência, cultura, lazer, transporte, urbanização, valores, convívio intergeracional e ética?
O evento foi realizado no campus universitário, aberto a comunidade sobralense. Para que o fórum fosse um espaço de trocas de saberes e práticas, onde os diversos tivessem direito à voz, trazendo reflexões novas sobre esse novo tempo de viver muito, buscou-se garantir e valorizar a participação de todos. Havia a preocupação para que estivessem presentes pessoas de diversas origens sociais, culturais, econômicas, intelectuais, étnicas, etárias, moradores, profissionais e políticos. Convidamos estudantes universitários, professores, profissionais liberais, profissionais das políticas públicas de assistência, educação, saúde, lazer, desporto, urbanização, trabalho e renda, previdência, comunidades da agricultura familiar e permacultores, quilombolas, povo originário Tremembé, organizações não-governamentais, lideres espontâneos de grupos de idosos, de moradores, representantes religiosos, pessoas referencias de saúde na comunidade, que geralmente são idosas, tais como: raizeiras, benzedeiras, parteiras; também vereadores, representantes do executivo municipal, dos conselhos de saúde, do idoso, da educação e tutelar, gerontólogos e geriatras. Participaram em torno de aproximadamente 150 pessoas em atividades que duraram um dia inteiro.
A metodologia dialógica-vivencial (Góis, 2001), foi utilizada por meio de círculos de cultura (Freire, 2011), vivências biocêntricas (Toro, 1991) e arte-identidade (Góis, 2008). Iniciamos os trabalhos com vivências de integração, onde as pessoas puderam se apresentar e se encontrar com muitas outras. A seguir, os membros do Laelon apresentaram o laboratório e a proposta do encontro, fechando esse momento com um vídeo organizado pelo grupo. Partimos para os trabalhos em círculos de cultura, com o tema gerador do encontro: “Estamos vivendo mais, envelhecendo, e agora? O que pensamos e devemos fazer para que a vida seja longa e feliz para todos? Depois, foram compartilhados trabalhos científicos relacionados com o tema da longevidade, experiências populares como a do grupo de bordadeiras, experiências de plantios orgânicos conduzidos pelos idosos da comunidade agrícola presente, experiências de cuidados com a saúde apresentados pelos pajés de povos originários, apresentação de trabalhos realizados pela secretaria de assistência e profissionais da estratégia de saúde da família, e experiência de apoio emocional e espiritual conduzida por líder religioso.
 À tarde, tivemos apresentações de arte e cultura de pessoas ou grupos que quisessem partilhar sua expressão sensível. Houve apresentação de escultura, flores e frutos da terra colhidos pelos agricultores, artesanatos, poesias, pinturas, esculturas – expressão da identidade cultural. Em seguida voltamos aos círculos de cultura, com o tema gerador: O que podemos fazer individualmente e em comunidade, grupos, espaços políticos e de trabalho para construirmos o que sonhamos de vida longa e feliz para todos. Daí seguiu-se para a síntese dos círculos de cultura, as quais foram apresentadas de diferentes formas criativas.
Gerou-se um documento do fórum, onde entre outras coisas se propôs o aumento da participação dos diferentes grupos sociais, culturais e étnicos presentes nos conselhos do idoso; compromisso de todos em inserir a temática da longevidade em seus diversos lugares de atuação e comunidades com diferentes grupos etários; e estimular encontros como esses. O encontro foi finalizado com apresentações culturais diversas, como cantos, músicas e danças.
A criação desses espaços propicia a mediação e a tradução entre saberes e práticas diversas, favorecendo assim uma maior aproximação social e étnica, consciência plural, abertura à convivência e o aumento das vontades de intercâmbio entre os diversos.
Pensar sobre a infância e a juventude na América Profunda é reconhecer a diversidade étnica, social, cultural, territorial, de gênero, etc., que vai desde as raças, culturas, origens, até os gostos, escolhas, problemas, potenciais, sonhos, que trazem como cenário macrossocial, a condição em que se encontra grande maioria dessas crianças e jovens. É preciso questionar essa realidade, uma vez que os jovens constituem 40% da população da América espanhola e portuguesa (Kliksberg, 2006). Isso se configura como um desafio para nossa atuação, em que precisamos estar atentos a uma formação cultural com foco na promoção da cidadania e analisar criticamente como o conhecimento cientifico/profissional está sendo utilizado. Analisar esse cenário significa direcionar nossas atuações e conhecimentos no sentido de uma práxis transformadora (Nepomuceno; Ximenes, et. al., 2008), assim como compreender os impactos da pobreza sobre a juventude pobre da América (Feitosa & Dimenstein, 2004).
Diante dessa realidade marcada por uma estrutura autoritária e excludente (Pinheiro, 2004), questionamos se as políticas públicas e os profissionais estão atuando de modo ajustado ou não a essa lógica de dominação. Uma questão importante é mediar processos que levem educadores sociais a compreenderem suas formas de atuação em grupos de crianças e de jovens e a importância de se abrir mão de intervenções autoritárias (Góis, 2008).
Na cidade de Sobral, interior do Ceará, trabalhamos com um grupo de educadores sociais, buscando com eles problematizar a necessidade de se atuar mediante grupos e os modos de facilitar esses grupos, formados por crianças e jovens da periferia. Dividimos os educadores em 6 subgrupos, com uma média de 7 pessoas cada. Usamos a técnica da colagem como mediadora de significados e sentidos sobre a facilitação em grupo e o modo de facilitar. O envolvimento dos participantes e o desejo deles de falar sobre a questão surgiram progressivamente e logo o diálogo o aparecimento de percepções democráticas sobre a importância do fazer democrático e com dinamicidade a facilitação do grupo. Também se viu a possibilidade de aprender diante do inesperado trazido pelos jovens e crianças.
À medida que o diálogo se desenrolava era feita uma ligação com as seguintes características de um facilitador de grupo, conforme apontado por Góis (2008): “Inserção comunitária/grupal; potência pessoal; capacidade de vínculo; conhecimento científico e técnico; manejo democrático do grupo; capacidade de apoiar de dar limites; fluidez verbal; didática”. Outros olhares foram surgindo no diálogo entre os educadores, como o de não só ver uma juventude marginalizada e oprimida, mas também ver várias juventudes e todas elas tendo potencialidades e capacidades capazes de se desenvolverem em um espaço democrático de facilitação dos grupos de crianças e de jovens. Ficou patente entre os educadores o diferencial que construíram para se trabalhar com grupos de adolescentes, perceberam que as práticas anteriores, distanciadas, individualizadas, autoritárias não cabiam na situação atual de trabalho com crianças e jovens da periferia, por serem práticas de colonialidade.
Violência, Juventude e Participação Comunitária
            A violência tem um caráter histórico-cultural, é impossível entendê-la fora do contexto social. (Santos, Alessio, & Amp; Silva, 2009). Nesta perspectiva, a violência urbana pode ser vista como representação social, expressão simbólica que constrói subjetivamente determinados sistemas de certos espaços e pessoas, comportamentos e fatores de organização das relações sociais. Quando um é classificado como violento, é também pela dimensão simbólica. Por isso se estabelece numa sociedade uma visão estigmatizada e territorial de bairros classificados como pobres, violentos, por seus próprios moradores (Barreira, Almeida, Brasil, & Amp; Freitas, 2010). Existe violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem direto ou indireto, forte ou sutil, causando danos a uma ou mais pessoas em um grau variável, na sua integridade física, sua integridade moral, bens materiais ou em suas participações simbólicas e culturais. Além disso, significa que a violência envolve o uso ilegítimo da força, a coerção e opressão explícita ou velada (Michaud, 1989). A violência também afeta desigualmente a população, dependendo da classe social, gênero, idade, raça e etnia (Ramos e Carvalho, 2007). Os jovens são os mais afetados pelos diferentes efeitos e manifestações da distribuição desigual de renda (Waiselfisz, 2013).
            Para aprofundar essa questão, realizamos uma pesquisa (Cavalcante Góis, 2011) em dois bairros pobres de Fortaleza com o objetivo de verificar a relação entre violência, juventude e participação comunitária. Os participantes que compuseram a amostra foram escolhidos aleatoriamente entre os jovens residentes dos bairros; 110 pessoas com idades entre 15 a 23 anos de idade, dos quais 53,6% homens 46,4% mulheres, 20% das pessoas não estudavam e 59,1% da amostra estava participando de alguma atividade na Comunidade. As variáveis estudadas foram: a violência em suas dimensões de vitimização, exercício e percepção da mesma e a participação comunitária. Para isso, desenvolveu-se um instrumento com ações do cotidiano onde os entrevistados responderam se algum ato violento tinha se passado com eles, se tinham praticado ou em que grau avaliavam tal ato como violento. Também havia um instrumento que media a participação comunitária dos entrevistados no ano anterior ao da pesquisa em relação à frequência, ao papel e a forma de participação, destinada apenas para aqueles que responderam a uma pergunta inicial, dizendo se tinha participado em qualquer atividade na comunidade no período avaliado.
Os resultados indicaram que os mais envolvidos em atividades comunitárias são aqueles que mais valorizam as ações violentas como violentas, ou que eles estão mais conscientes da violência. A frequência com que este jovem participa de atividades na comunidade é associada negativamente com violência, salientando que aqueles que participam na comunidade mais vezes por semana são aqueles que praticam menos a violência. Também, o presente estudo revela que a vitimização e uma menor participação na frequência de atividades comunitárias prevê 27,4% do exercício da violência na juventude investigada. Da mesma forma, Parnes (2008) diz que a exposição à violência pode limitar a capacidade dos jovens para lidar adequadamente com suas emoções e comportamentos.
Na amostra estudada, em geral, a dimensão participação comunitária, principalmente a frequência nas atividades que são oferecidas à comunidade, está diretamente relacionada com uma menor prática da violência e com uma melhor percepção ou valoração desta, e indiretamente com uma menor vitimização. Isso poderia estar indicando que o jovem envolvido em atividades comunitárias tem uma percepção melhor sobre o que é violência e vitimização, e a exerce menos. Ou, o que é o mesmo, jovens envolvidos em atividades comunitárias mostram uma maior capacidade para lidar com a violência. Para Elias (2011) a convivência é essencial para a redução da violência e a participação é um elemento central nas teorias da democracia, onde o que se opõe à cidadania é a violência. Poderíamos dizer, talvez, que a participação comunitária, principalmente pela forma como é realizada nos bairros, permite que os jovens desenvolvam comportamentos de vida, cidadania e comunidade, consequentemente, reduzindo seus comportamentos destrutivos para si, para com o outro e para sua comunidade.
5.    CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos em um momento de radicalidade e de repensar caminhos para o que fazer em Psicologia Comunitária. Tentar, por meio de problematizações e atuações, evidenciar a possibilidade de contribuir com a pesquisa e com a facilitação de processos comunitários mais livres da colonialidade. Implicar, por exigência de outro horizonte ético-político, o acadêmico e o profissional da Psicologia Comunitária numa realidade humana, social e étnica a partir das epistemologias do sul e da libertação. Contribuir para esse novo momento da Psicologia Comunitária, em seus desafios, possibilidades e limitações, sem deixar de considerar que ciência e ideologia andam juntas.
Os relatos das experiências aqui apresentadas procuram trazer a questão da mediação em uma realidade plural, em seus aspectos de diálogo, vivência e ação-participante, como condição integrada e facilitadora da práxis de libertação. Sabemos que outros trabalhos estão sendo realizados tomando como referencial a América Profunda, e com o nosso queremos contribuir para que esse espaço das epistemologias do sul e da libertação possa influir mais sobre o pensamento acadêmico, sobre a Psicologia e, especificamente, sobre a Psicologia Comunitária e a vida nas comunidades sociais e étnicas dessas terras de América. 
6.    REFERÊNCIAS
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[1] Doutor em Psicologia, Universidade de Barcelona. Professor de Psicologia, Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro da Universidade Biocêntrica.
[2] Doutora em Psicogerontologia Universidade de Barcelona. Professora de Psicologia do Desenvolvimento do Curso de enfermagem da UFC.
[3] Psicóloga e mestre em Psicologia Social, Universidade de Granada e membro da Universidade Biocêntrica.
[4] Psicóloga, mestranda em Psicologia-UFC e integrante do Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom), UFC.

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