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27 de julho de 2014

Reverência ao mestre, companheiro e amigo, Rolando Toro, chileno, criador da Biodança.

Terminando a Trilha dos Incas. Reverência biocêntrica a Machu Picchu e a todos os povos originários da América Profunda.

26 de julho de 2014

CARTA DE ROLANDO TORO AOS ALUNOS DE BIODANÇA
1981

Transcrevo abaixo um documento histórico, a mensagem de Rolando Toro a todos os alunos de Biodança, escrita em um dos momentos difíceis da árdua tarefa de construção e implantação da Biodança no Brasil, 1975 - 1982.
Nesse momento ditatorial, os agentes da Inquisição foram o Conselho Federal de Psicologia e a Polícia Federal do Brasil. O ato de deter Rolando Toro em Curitiba, baseados no famigerado Estatuto do Estrangeiro elaborado pela Ditadura Militar, fica gravado na história como uma peça do absurdo e do moralismo. Tentaram expulsá-lo do Brasil, mas fracassaram, foram vencidos pela lucidez de outros e pela luta dos que defendiam a Biodança.

  
            Amigos, filhos queridos, doce gente brasileira,
           
A grandiosidade dos povos se manifesta precisamente nos momentos difíceis e de crise.
            Quando as forças da estupidez e da degradação se conjuram para tratar de destruir tudo o que floresce, o encanto de viver, o júbilo da amizade, o calor apaixonado do amor, a inocência e a fé num mundo melhor; quando essas forças da bestialidade institucionalizada arremetem através de decretos e mandados contra o povo de Biodança e contra a minha pessoa, nesses momentos de inusitada violência, tenho recebido o maior presente que um homem pode ganhar na vida: a intensa solidariedade humana.
Esta união nos faz invencíveis.
De todos os rincões do Brasil, de Fortaleza, bem-amada, generosa e sedenta; da potente São Paulo, eriçada de cimento, distribuindo poesia e desesperação; de Brasília, crepúsculo vermelho e aba dos amigos; do Rio de Janeiro, de mar azul e pele ardente; de Bauru, mágico e íntimo; de Belo Horizonte, magnetismo geológico e realidade de amor; de Florianópolis, intelectual e luminosa; de Porto Alegre, extensa lealdade em verdes prados; de Vitória, de doçuras secretas e voluptuosa inteligência; desde os quatro pontos cardeais do Brasil, como se o vento amazônico juntasse as vontades em um só ponto e me trouxesse as mensagens, os chamamentos, as cartas, as palavras de solidariedade, as mãos estendidas, os abraços.
            Esta noite durmo tranquilo, nos braços de milhares de amigos.
           Irmãos queridos! Nunca me senti tão forte como hoje. Meu coração é uma lança, meu cérebro está desperto e sensibilizado.
           Escrevo esta mensagem depois de sórdidas e dramáticas horas nas quais, junto com minha companheira Cecília, conheci o desprezo e a indecência tangíveis em nossa época.
           Recebam vocês meu amor, minha determinação e gratidão.
         Seguirei a linha traçada pela Biodança.e que um dia se descubra que o paraíso é o irmão.


Rolando Toro, 1981


22 de julho de 2014

Faça amor, não faça a guerra.


Viver
Encontrar cores na terra molhada,
Na água de chuva
No sol da manhã entre as nuvens
No pássaro que pousa na árvore
Próximo ao seu ninho
Renascer
Encontrar-me brotando
No amor que fracassa e que floresce
No amigo que encontro
Na cidade que construo contigo
Nos filhos que me ensinam
O que não consegui ensinar-lhes
Na passagem dos anos
No tempo e não-tempo do amar
Celebrar
A vida em suave canto
Bela, voraz, voluptuosa
Brotando em seiva nos corpos desnudos
Desmanchar-me em fornalha
Incendiando o instante de te ver,
De fundir os corpos e renascer
Abraçados, abrazados
Dançar
Encontrar-te no sol da manhã
Nessas tardes de verão, em noite de luar
E nas estrelas adormecer contigo
No infinito mistério da união
Participar
Estar ao teu lado
Construindo cidadania
Defendendo a vida de tanta opressão
Ouvir atento dos teus lábios
Um canto de justiça e liberdade
Sofrer por ti e por quem não se conhece
Lutar por ti e por quem não se conhece
Fluir
Em tempos e espaços dobrados
De magia e estórias sem fim
Sem temer planícies e abismos
Navegar e ser criança
Andar e voar por montanhas contigo
E tanto mais
Enfrentar o sombrio lago, mar tenebroso
Das fantasias, do terror e do poder
E brincar com inocência e arte
Sonhar
Olhar a noite escura
E de pé
De rosto para o céu profundo
Ser-Estrela, ser imaginação, tornar-se luz
De muito longe, de todos os lugares
Adormecer na noite, silêncio de sábio
Quietude de recém-nascido

Fortaleza, 19/10/1991

19 de julho de 2014




A POSSIBILIDADE DE FAZER MEDIAÇÕES SÓCIOPSICOLÕGICAS E ÉTNICAS (DECODIFICAÇÕES, TRADUÇÕES, CONVIVÊNCIAS) EM PSICOLOGIA COMUNITÁRIA NA PERSPECTIVA DA AMÉRICA PROFUNDA.
Cezar Wagner de Lima Góis[1]
Luciane Alves de Oliviera[2]
Sara Cavalcante Góis[3]
Alexsandra Silva[4]
RESUMO
Nesse artigo problematizamos a aproximação da Psicologia Comunitária com a ideia de América Profunda, considerando-a capaz de contribuir por meio de mediações e traduções na construção de conhecimentos e na recriação da vida social, étnica e humana como diversidade local. Buscamos clarificar a questão desde o olhar da libertação e das epistemologias do sul, e apresentar experiências que afirmem esse modo de fazer Psicologia Comunitária. Tratamos da colonialidade relacionando-a com o que fazer em Psicologia Comunitária e enfatizamos a importância da mediação sóciopsicológica/étnica, das traduções de olhares, e os aspectos que constituem essa mediação: o dialógico, o vivencial e o participante. Para finalizar essas reflexões, relatamos de modo breve algumas experiências de facilitação e de pesquisa realizadas por nós no Ceará, especialmente na capital, Fortaleza, e no município de Sobral.
   Palavras-chaves: Psicologia Comunitária, América Profunda, mediação, sujeito da comunidade.
1. INTRODUÇÃO
Pensar a Psicologia Comunitária na realidade social de hoje é reconhecer a pluralidade, considerar a diversidade epistemológica. Não há possibilidade de seguirmos por caminhos de colonialidade (Quijano, 2010). Esta, proveniente do colonialismo, se refere a um aspecto grave do padrão mundial do poder capitalista imposto ao mundo, caracterizado por classificações raciais/étnicas como base para esse padrão de poder operar no mundo por meio de dimensões materiais, sociais e subjetivas, inclusive epistêmicas. Em Psicologia Comunitária implica assumir outra atitude epistemológica, aberta às cosmovisões locais e baseada nas epistemologias do Sul (Sousa Santos, 2010), e da libertação (Dussel, 1977; Martin-Baró, 1998; Freire, 2011). Cada povo, cada comunidade social, tem seu modo de vida e seu próprio saber, o qual pode traduzir outros e ser traduzido por estes. Isso significa reconhecer e aceitar a pluralidade étnica, social e epistêmica, e não mais permanecer no olhar da colonialidade, que a tudo traduz e nos entrega sempre como o válido e o verdadeiro. Compreender também que essa tradução no interior de cada povo e classe social, ou entre povos e classes sociais, com possibilidade de recriação a partir daí, se encontra numa condição mediadora complexa, numa abertura dialógica, afetiva, ética e transdisciplinar.
Nesse olhar podemos reconhecer o rosto antigo, escondido, humilhado, mas que resiste e é criativo (Kusch, 1986; Dussel, 1977; Menezes, 2006; Martin-Baró, 1998; Freire, 1979). É o rosto dos povos originários, dos quilombolas, dos mestiços e afro-descendentes pobres, rosto que resiste e perdura nos países atuais da América.
Nessas condições historicamente dadas, fazer mediações, traduções entre as cosmovisões, os pensares, em espaços de convivencialidade (Boff, 1999) implica, por um lado, reconhecer a grave desigualdade étnica e social, e por outro, considerar a possibilidade de mediações, sem desconsiderar o protesto e o confronto como meio para se chegar à negociação e à convivência democrática entre os diversos da América.
Diante dessas questões atuais, o desafio que surge para a Psicologia Comunitária na América Profunda é o de facilitar processos de mediação psicossocial/étnica que contemplem decodificações, traduções e convivencialidade no interior de uma sociedade e/ou entre povos, trabalhar com a população pobre (mestiços e afro-descendentes em geral), também por fora das políticas públicas, e aproximar-se mais dos povos originários e quilombolas.
2. AMÉRICA PROFUNDA
Contrapondo-se à América dos colonizadores, encontramos as ideias de Ameríndia (Dussel, 2010) e de América Profunda (Kusch, 1986). Ambas estão relacionadas com os povos originários. Entretanto, não podemos negar o processo civilizatório pós Colombo, porém é preciso considerar nessa questão a palavra profunda como a característica central do que hoje é a América, diferentemente da ideia de América Profunda apresentada por Rodolfo Kusch. Dar-lhe outro significado, que se traduz como aceitar a pluralidade, o mais antigo (povos originários), o conquistador (povos europeus), o traficado (povos africanos), o quilombola (remanescentes dos povos africanos que vivem em Quilombos), o afro-descendente e o mestiço das sociedades atuais, como uma realidade histórica que está aí e que pode significar o solo para uma consciência americana plural e libertária, mais de democracia do que de dominação, exploração e pobreza (Cidade, Moura Jr. & Ximenes, 2010). Uma utopia, um horizonte ético-político referente para os passos atuais, para a recriação epistemológica e a possibilidade da convivência democrática.
 3. PSICOLOGIA COMUNITÁRIA E AMÉRICA PROFUNDA
O que buscamos em meio a essas questões de fundo é fazer uma Psicologia Comunitária (Góis, 2005; Ximenes & Góis, 2010) cada vez mais ciência do sujeito comunitário e da mediação sócio-psicológica e étnica, um meio para se construir e se reconstruir conhecimentos em meio à pluralidade de saberes e de práticas, bem como favorecer a expressão e fortalecimento de identidades pessoais, sociais e culturais.
Entendemos que a Psicologia Comunitária é capaz de fazer mediações (decodificações, traduções e convivências) nos espaços das comunidades, tanto no sentido da construção de conhecimentos (acadêmicos, profissionais e populares), como no sentido da facilitação de processos sóciopsicológicos e étnicos que contribuam para a recriação do indivíduo em sujeito de sua vida e da comunidade. Compreender a Psicologia Comunitária na América atual é revirá-la para aprumá-la no rumo das epistemologias da libertação, das epistemologias do sul, da potencialidade e potência inerentes à própria localidade social e étnica, comunitária.
Trazer essa questão para o interior da Psicologia Comunitária é apoiar-nos na possibilidade de reconhecer, acercar-se e implicar-se no universo local para decodificar, mediar presenças e convivências, facilitar traduções e compreensões entre práticas e saberes locais de uma mesma cultura ou de distintas culturas e subculturas presentes nas comunidades e em suas relações com outros lugares, até mesmo de outras etnias, com os saberes das diversas disciplinas acadêmicas e áreas profissionais que tentam uma aproximação para agir nas realidades comunitárias.
A Psicologia Comunitária pode lidar com mediações de saberes, de sentidos, de sentimentos, de ações e de recriações solidárias do humano, do cultural e do social, de facilitação de processos nos quais os indivíduos criam a si como sujeitos individuais portadores da condição de sujeito coletivo (Touraine, 2007).
Posicionar-se na mediação é se implicar com indivíduos e grupos para com eles construir conhecimentos e ações por meio do diálogo, da vivência e da ação-participante. O diálogo como meio de aproximar e aprofundar significados e sentidos (Freire, 1994); a vivência como caminho de expressão de sentimentos (Toro, 1991) e de construção de sentidos, de estar com o outro no mundo; e a ação-participante (Fals Borda, 1978) como presença do sujeito individual e equidade de saberes. Diálogo, vivência e ação-participante são constituintes de um só processo de mediação onde ciência e política não se separam..
4.    RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
À guisa de pequenos relatos, apresentamos a seguir algumas experiências de mediação referenciadas nas epistemologias do sul e da libertação. Mencionaremos: Método clínico-comunitário; Lagamar - a luta pelo direito à cidade; Dialogando sobre a longevidade em Sobral; Um panorama das crianças e jovens da periferia: entre experiências, reflexões e tessituras; e, por fim, Jovem, violência e participação comunitária.
. Método Clínico-Comunitário
O método é dialógico-vivencial-ativo e foi inicialmente aplicado em um bairro da periferia de Fortaleza. Contém quatro estratégias metodológicas básicas entrelaçadas.  
. Inserção e ação na comunidade
            O profissional se envolve nas principais questões ou problemas vividos pela população, os quais são claros e frequentemente debatidos nos encontros comunitários. Ele deixa de ser um técnico fechado em um único local de atendimento para ser um profissional ativo que participa da vida da comunidade.
            . Prática Clínica - Terapia pelo Encontro
É uma terapia popular em grupo Góis (2012), uma prática clínica de prevenção em saúde mental. Tem como objetivo facilitar processos existenciais que permitam ao morador superar ou evitar que o sofrimento lhe impeça de melhorar sua vida e a vida da comunidade. É formada por quatro linhas de facilitação que se mesclam continuamente e se separam em certas condições do processo do grupo. Isso quer dizer que no processo de uma sessão pode-se passar por todas, por três, por duas ou por uma só das linhas de facilitação. A primeira e a segunda linhas estão relacionadas com a fala profunda, quer dizer, a fala que vem do próprio fluxo de vida de quem fala, é expressiva e envolve ou atrai a quem está escutando; é reveladora do que a própria pessoa sente e pensa a respeito de si e do mundo. Dar-se quando o morador fala de seu sofrimento e de sentimentos positivos também presentes em meio à sua dor, isto é, acontece quando ele fala de si e também quando dialoga com outros sobre como vê o mundo e o que poderia fazer para melhorar sua comunidade. Quando a fala é narrativa de vida, a pessoa fala dela mesma, chamamos de fala existencial; quando se fala do mundo é problematizadora. A fala existencial e a fala problematizadora constituem a fala profunda. A terceira linha de facilitação é a dramatização (Moreno, 1990; Boal, 2002). O ato dramático é um meio de retomar vivências gravadas na história individual e coletiva, trazê-las ao presente como vivência do presente e não do passado, facilitando ao participante a condição de protagonista e espectador, com outros, de si mesmo. Cria o distanciamento necessário à manifestação da consciência do vivido, em que o material psíquico acumulado por repressões é transformado em instante vivido e elaborado como realidade presente.
A quarta e última linha de facilitação é a vivência, a qual nos traz de forma cristalina a qualidade do vivido. Surge da intensificação sensível e amorosa do corpo através da dança, de uma relação íntima corpo-mundo, uma corporeidade vivida (Merleau-Ponty, 1993), pulsando a partir de um mundo corporal, expressivo e relacional. O instante é vivido com grande intensidade pela pessoa e envolve, além de processos subjetivos, a sinestesia, a motricidade, as funções viscerais, as emoções e os sentimentos (Toro, 1991).
. Integração da prática clínica com atividades comunitárias, políticas públicas e terceiro setor na comunidade
            A prática clínica está imbricada na dinâmica comunitária, fazendo parte de um todo que denominamos de vida comunitária. O participante da prática clínica tem a oportunidade de também participar em outras atividades na comunidade, já que a clínica não acontece de forma separada da luta dos moradores, da vida em grupos solidários nem do apoio social informal (Oliveira, 2003) tão presente nas comunidades. Tampouco separada das políticas públicas presentes no lugar.
            . Lagamar - A luta dos moradores pelo direito à cidade
            Morar nua cidade em franco crescimento e de especulação imobiliária é algo desafiante para a população pobre, uma situação que na maioria das vezes os moradores são transferidos para lugares mais distantes, de acesso difícil. São mal indenizados e, por isso, é comum não terem condições para comprar uma casa nesses lugares indicados para a remoção deles. No Lagamar, área de um bairro de Fortaleza com uma população de 12.000 moradores, em geral mestiços e oriundos em sua maioria do sertão do Ceará, situada em um local de grande valorização fundiária, isso iria acontecer.
Do Plano-Diretor da cidade, que foi enviado para a Câmara de Vereadores de Fortaleza, foi retirada a definição do Lagamar como Zona Especial de Interesse Social – ZEIS, medida que levaria os moradores a uma completa desproteção social, urbana e fundiária. Sem ser ZEIS, os moradores do Lagamar correriam o grave risco de remoção. A maioria das lideranças tradicionais da área estava desiludida, em razão do boicote que Prefeitura e Vereadores realizavam, deixando as lideranças desinformadas e impotentes.
            Partindo dessa situação, algumas lideranças da Fundação Marco de Bruin, criada pelo antigo movimento popular do Lagamar, procuraram a nós com o convite para trabalharmos juntos no sentido de reverter a situação e garantir aos moradores o direito ao lugar.
            O trabalho com os moradores se pautou por mediações dialógicas, vivenciais e participantes, inicialmente entre eles, já que a área estava social e politicamente desorganizada para qualquer luta comunitária. Inúmeras reuniões, círculos de cultura, vivências, encontros em quarteirões e expressão da arte popular foram realizados ao longo de 04 meses, diariamente. Daí se descobriu o caminho de andar com determinação, uma marcha popular para chegar a Câmara dos Vereadores e ocupá-la sem violência até que a questão fosse resolvida. Foi um passo importante e decisivo, realizado por crianças, jovens, adultos e idosos. Outros passos foram necessários, novos encontros, reuniões, círculos de cultura e vivências, e mais duas marchas realizadas em direção a Prefeitura da cidade de Fortaleza.
            Um projeto de lei foi criado em conjunto Moradores-Prefeitura, todo negociado em comissões populares e técnicas, ponto a ponto, e enviado para a Câmara dos Vereadores. Diante de uma comitiva de moradores, o projeto foi aprovado na Câmara, definindo assim o Lagamar como zona especial de interesse social, prioridade para investimentos públicos na cidade, regularização fundiária e proteção contra a especulação imobiliária.
            O processo de mediação moradores-moradores na comunidade foi rico em criatividade, sentimentos, ações, enfrentamentos entre eles, negociação e cooperação, trazendo à consciência de inúmeros moradores a dignidade e a capacidade de luta, antes bastante enfraquecida.
Dialogando sobre a longevidade em Sobral
A expectativa de vida aumentada em diversos povos advém de diferentes fenômenos, que mesmo permeados de diversas contradições, sem dúvida é um ganho civilizatório impar na espécie humana (Oliveira, 2003). Mesmo considerando as diferentes formas de envelhecer numa realidade de desigualdade como a nossa, onde tal processo vivido por pessoas de condições de vida mais abastadas é diametralmente distinto do vivido por pessoas de vida sofrida, empobrecida e reduzida de possibilidade. Urge pensar o envelhecimento em sua condição coletiva, inserido num contexto social, cultural, econômico e étnico. Tais concepções sobre a longevidade estão presentes no Laboratório de Estudos sobre a Longevidade – LAELON, curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará. 
Uma experiência nossa a partir dessas preocupações foi a do I Fórum “Dialogando sobre a Longevidade”, ação do projeto de extensão “Vida longa e feliz para todos” em Sobral, município de 197.613 hab, sendo 13.944 idosos (IBGE, 2010). Na maioria dos municípios brasileiros, as discussões e ações nas temáticas da longevidade humana eram reduzidas e fragmentadas, isoladas de uma percepção mais ampla da vida municipalidade. O interesse do fórum era suscitar a temática da longevidade a partir da seguinte constatação: Estamos vivendo mais, envelhecendo, e o que estamos fazendo ou planejando para que nossa cidade seja favorável para que a vida seja longa e feliz para todos? Necessitávamos iniciar uma problematização sobre o direito de continuar vivendo com qualidade mesmo vivendo muito? É possível vencer o preconceito e o desconhecimento sobre o processo de envelhecer, enfrentar os desafios nos diversos âmbitos e setores da sociedade, tais como saúde, educação, assistência, cultura, lazer, transporte, urbanização, valores, convívio intergeracional e ética?
O evento foi realizado no campus universitário, aberto a comunidade sobralense. Para que o fórum fosse um espaço de trocas de saberes e práticas, onde os diversos tivessem direito à voz, trazendo reflexões novas sobre esse novo tempo de viver muito, buscou-se garantir e valorizar a participação de todos. Havia a preocupação para que estivessem presentes pessoas de diversas origens sociais, culturais, econômicas, intelectuais, étnicas, etárias, moradores, profissionais e políticos. Convidamos estudantes universitários, professores, profissionais liberais, profissionais das políticas públicas de assistência, educação, saúde, lazer, desporto, urbanização, trabalho e renda, previdência, comunidades da agricultura familiar e permacultores, quilombolas, povo originário Tremembé, organizações não-governamentais, lideres espontâneos de grupos de idosos, de moradores, representantes religiosos, pessoas referencias de saúde na comunidade, que geralmente são idosas, tais como: raizeiras, benzedeiras, parteiras; também vereadores, representantes do executivo municipal, dos conselhos de saúde, do idoso, da educação e tutelar, gerontólogos e geriatras. Participaram em torno de aproximadamente 150 pessoas em atividades que duraram um dia inteiro.
A metodologia dialógica-vivencial (Góis, 2001), foi utilizada por meio de círculos de cultura (Freire, 2011), vivências biocêntricas (Toro, 1991) e arte-identidade (Góis, 2008). Iniciamos os trabalhos com vivências de integração, onde as pessoas puderam se apresentar e se encontrar com muitas outras. A seguir, os membros do Laelon apresentaram o laboratório e a proposta do encontro, fechando esse momento com um vídeo organizado pelo grupo. Partimos para os trabalhos em círculos de cultura, com o tema gerador do encontro: “Estamos vivendo mais, envelhecendo, e agora? O que pensamos e devemos fazer para que a vida seja longa e feliz para todos? Depois, foram compartilhados trabalhos científicos relacionados com o tema da longevidade, experiências populares como a do grupo de bordadeiras, experiências de plantios orgânicos conduzidos pelos idosos da comunidade agrícola presente, experiências de cuidados com a saúde apresentados pelos pajés de povos originários, apresentação de trabalhos realizados pela secretaria de assistência e profissionais da estratégia de saúde da família, e experiência de apoio emocional e espiritual conduzida por líder religioso.
 À tarde, tivemos apresentações de arte e cultura de pessoas ou grupos que quisessem partilhar sua expressão sensível. Houve apresentação de escultura, flores e frutos da terra colhidos pelos agricultores, artesanatos, poesias, pinturas, esculturas – expressão da identidade cultural. Em seguida voltamos aos círculos de cultura, com o tema gerador: O que podemos fazer individualmente e em comunidade, grupos, espaços políticos e de trabalho para construirmos o que sonhamos de vida longa e feliz para todos. Daí seguiu-se para a síntese dos círculos de cultura, as quais foram apresentadas de diferentes formas criativas.
Gerou-se um documento do fórum, onde entre outras coisas se propôs o aumento da participação dos diferentes grupos sociais, culturais e étnicos presentes nos conselhos do idoso; compromisso de todos em inserir a temática da longevidade em seus diversos lugares de atuação e comunidades com diferentes grupos etários; e estimular encontros como esses. O encontro foi finalizado com apresentações culturais diversas, como cantos, músicas e danças.
A criação desses espaços propicia a mediação e a tradução entre saberes e práticas diversas, favorecendo assim uma maior aproximação social e étnica, consciência plural, abertura à convivência e o aumento das vontades de intercâmbio entre os diversos.
Pensar sobre a infância e a juventude na América Profunda é reconhecer a diversidade étnica, social, cultural, territorial, de gênero, etc., que vai desde as raças, culturas, origens, até os gostos, escolhas, problemas, potenciais, sonhos, que trazem como cenário macrossocial, a condição em que se encontra grande maioria dessas crianças e jovens. É preciso questionar essa realidade, uma vez que os jovens constituem 40% da população da América espanhola e portuguesa (Kliksberg, 2006). Isso se configura como um desafio para nossa atuação, em que precisamos estar atentos a uma formação cultural com foco na promoção da cidadania e analisar criticamente como o conhecimento cientifico/profissional está sendo utilizado. Analisar esse cenário significa direcionar nossas atuações e conhecimentos no sentido de uma práxis transformadora (Nepomuceno; Ximenes, et. al., 2008), assim como compreender os impactos da pobreza sobre a juventude pobre da América (Feitosa & Dimenstein, 2004).
Diante dessa realidade marcada por uma estrutura autoritária e excludente (Pinheiro, 2004), questionamos se as políticas públicas e os profissionais estão atuando de modo ajustado ou não a essa lógica de dominação. Uma questão importante é mediar processos que levem educadores sociais a compreenderem suas formas de atuação em grupos de crianças e de jovens e a importância de se abrir mão de intervenções autoritárias (Góis, 2008).
Na cidade de Sobral, interior do Ceará, trabalhamos com um grupo de educadores sociais, buscando com eles problematizar a necessidade de se atuar mediante grupos e os modos de facilitar esses grupos, formados por crianças e jovens da periferia. Dividimos os educadores em 6 subgrupos, com uma média de 7 pessoas cada. Usamos a técnica da colagem como mediadora de significados e sentidos sobre a facilitação em grupo e o modo de facilitar. O envolvimento dos participantes e o desejo deles de falar sobre a questão surgiram progressivamente e logo o diálogo o aparecimento de percepções democráticas sobre a importância do fazer democrático e com dinamicidade a facilitação do grupo. Também se viu a possibilidade de aprender diante do inesperado trazido pelos jovens e crianças.
À medida que o diálogo se desenrolava era feita uma ligação com as seguintes características de um facilitador de grupo, conforme apontado por Góis (2008): “Inserção comunitária/grupal; potência pessoal; capacidade de vínculo; conhecimento científico e técnico; manejo democrático do grupo; capacidade de apoiar de dar limites; fluidez verbal; didática”. Outros olhares foram surgindo no diálogo entre os educadores, como o de não só ver uma juventude marginalizada e oprimida, mas também ver várias juventudes e todas elas tendo potencialidades e capacidades capazes de se desenvolverem em um espaço democrático de facilitação dos grupos de crianças e de jovens. Ficou patente entre os educadores o diferencial que construíram para se trabalhar com grupos de adolescentes, perceberam que as práticas anteriores, distanciadas, individualizadas, autoritárias não cabiam na situação atual de trabalho com crianças e jovens da periferia, por serem práticas de colonialidade.
Violência, Juventude e Participação Comunitária
            A violência tem um caráter histórico-cultural, é impossível entendê-la fora do contexto social. (Santos, Alessio, & Amp; Silva, 2009). Nesta perspectiva, a violência urbana pode ser vista como representação social, expressão simbólica que constrói subjetivamente determinados sistemas de certos espaços e pessoas, comportamentos e fatores de organização das relações sociais. Quando um é classificado como violento, é também pela dimensão simbólica. Por isso se estabelece numa sociedade uma visão estigmatizada e territorial de bairros classificados como pobres, violentos, por seus próprios moradores (Barreira, Almeida, Brasil, & Amp; Freitas, 2010). Existe violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem direto ou indireto, forte ou sutil, causando danos a uma ou mais pessoas em um grau variável, na sua integridade física, sua integridade moral, bens materiais ou em suas participações simbólicas e culturais. Além disso, significa que a violência envolve o uso ilegítimo da força, a coerção e opressão explícita ou velada (Michaud, 1989). A violência também afeta desigualmente a população, dependendo da classe social, gênero, idade, raça e etnia (Ramos e Carvalho, 2007). Os jovens são os mais afetados pelos diferentes efeitos e manifestações da distribuição desigual de renda (Waiselfisz, 2013).
            Para aprofundar essa questão, realizamos uma pesquisa (Cavalcante Góis, 2011) em dois bairros pobres de Fortaleza com o objetivo de verificar a relação entre violência, juventude e participação comunitária. Os participantes que compuseram a amostra foram escolhidos aleatoriamente entre os jovens residentes dos bairros; 110 pessoas com idades entre 15 a 23 anos de idade, dos quais 53,6% homens 46,4% mulheres, 20% das pessoas não estudavam e 59,1% da amostra estava participando de alguma atividade na Comunidade. As variáveis estudadas foram: a violência em suas dimensões de vitimização, exercício e percepção da mesma e a participação comunitária. Para isso, desenvolveu-se um instrumento com ações do cotidiano onde os entrevistados responderam se algum ato violento tinha se passado com eles, se tinham praticado ou em que grau avaliavam tal ato como violento. Também havia um instrumento que media a participação comunitária dos entrevistados no ano anterior ao da pesquisa em relação à frequência, ao papel e a forma de participação, destinada apenas para aqueles que responderam a uma pergunta inicial, dizendo se tinha participado em qualquer atividade na comunidade no período avaliado.
Os resultados indicaram que os mais envolvidos em atividades comunitárias são aqueles que mais valorizam as ações violentas como violentas, ou que eles estão mais conscientes da violência. A frequência com que este jovem participa de atividades na comunidade é associada negativamente com violência, salientando que aqueles que participam na comunidade mais vezes por semana são aqueles que praticam menos a violência. Também, o presente estudo revela que a vitimização e uma menor participação na frequência de atividades comunitárias prevê 27,4% do exercício da violência na juventude investigada. Da mesma forma, Parnes (2008) diz que a exposição à violência pode limitar a capacidade dos jovens para lidar adequadamente com suas emoções e comportamentos.
Na amostra estudada, em geral, a dimensão participação comunitária, principalmente a frequência nas atividades que são oferecidas à comunidade, está diretamente relacionada com uma menor prática da violência e com uma melhor percepção ou valoração desta, e indiretamente com uma menor vitimização. Isso poderia estar indicando que o jovem envolvido em atividades comunitárias tem uma percepção melhor sobre o que é violência e vitimização, e a exerce menos. Ou, o que é o mesmo, jovens envolvidos em atividades comunitárias mostram uma maior capacidade para lidar com a violência. Para Elias (2011) a convivência é essencial para a redução da violência e a participação é um elemento central nas teorias da democracia, onde o que se opõe à cidadania é a violência. Poderíamos dizer, talvez, que a participação comunitária, principalmente pela forma como é realizada nos bairros, permite que os jovens desenvolvam comportamentos de vida, cidadania e comunidade, consequentemente, reduzindo seus comportamentos destrutivos para si, para com o outro e para sua comunidade.
5.    CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos em um momento de radicalidade e de repensar caminhos para o que fazer em Psicologia Comunitária. Tentar, por meio de problematizações e atuações, evidenciar a possibilidade de contribuir com a pesquisa e com a facilitação de processos comunitários mais livres da colonialidade. Implicar, por exigência de outro horizonte ético-político, o acadêmico e o profissional da Psicologia Comunitária numa realidade humana, social e étnica a partir das epistemologias do sul e da libertação. Contribuir para esse novo momento da Psicologia Comunitária, em seus desafios, possibilidades e limitações, sem deixar de considerar que ciência e ideologia andam juntas.
Os relatos das experiências aqui apresentadas procuram trazer a questão da mediação em uma realidade plural, em seus aspectos de diálogo, vivência e ação-participante, como condição integrada e facilitadora da práxis de libertação. Sabemos que outros trabalhos estão sendo realizados tomando como referencial a América Profunda, e com o nosso queremos contribuir para que esse espaço das epistemologias do sul e da libertação possa influir mais sobre o pensamento acadêmico, sobre a Psicologia e, especificamente, sobre a Psicologia Comunitária e a vida nas comunidades sociais e étnicas dessas terras de América. 
6.    REFERÊNCIAS
Barreira, C., Almeida, R., Brasil, G., & Freitas, G. (2010). Pesquisa cartografia da criminalidade e da violencia na cidade de Fortaleza. Recuperado el 10 de novembro de 2011, del Site de la Universidade Estadual do Ceará: www.uece.br/labvida/dmdocuments/relatorio.pdf
Baró, M. (1998). Psicología de la liberación. Madrid: Trotta. Amalio Blanco (org.).
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[1] Doutor em Psicologia, Universidade de Barcelona. Professor de Psicologia, Universidade Federal do Ceará (UFC) e membro da Universidade Biocêntrica.
[2] Doutora em Psicogerontologia Universidade de Barcelona. Professora de Psicologia do Desenvolvimento do Curso de enfermagem da UFC.
[3] Psicóloga e mestre em Psicologia Social, Universidade de Granada e membro da Universidade Biocêntrica.
[4] Psicóloga, mestranda em Psicologia-UFC e integrante do Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom), UFC.

18 de julho de 2014




















3.  CULTURA BIOCÊNTRICA 
A caminhada civilizatória nos trouxe até aqui, um momento de profundos sentimentos e reflexões coletivas sobre a vida, a natureza, o social, a cultura, o espírito, o conhecimento, a tecnologia e, mesmo, sobre nossa existência singular e cotidiana.
A sociedade moderna em sua base antropocêntrica quase nos dá a certeza de uma superioridade que se manifesta em quase todos os aspectos da vida social, laboral, científica e tecnológica. Os resultados dessa forma de agir demonstram o aparente sucesso da razão e da modernidade em detrimento da vivência do amor, da oferenda e do agradecimento entre os seres humanos e destes para com a Natureza.
Que podemos fazer, então, frente a essa suposta superioridade? Que podemos dizer sobre as doenças de civilização no mundo atual? Da destruição ambiental? Do individualismo e consumismo? Das guerras? Da pobreza? Da exploração desenfreada da Natureza e dos próprios seres humanos? Da depressão? Da violência? Do Desamor?

3.1. CAMINHAR ANTROPOCÊNTRICO
Avançamos, iluminamos, cada vez mais, o nosso caminhar, fazendo estradas e indo a lugares insuspeitados, por dentro e por fora de nós mesmos. Pensamos (erroneamente) que nada nos detém, nem a Natureza com sua energia vital que, em muitos instantes, se manifesta de forma poderosa e dramática no cenário civilizatório urbano e rural, como se viu recentemente nas imagens televisivas do Tsunami no Oceano Índico, dos furacões passando pela Flórida e Nova Órleans, do terremoto no Paquistão e da seca na Amazônia.
Somos capazes de construir e reconstruir, produzir alimentos, viajar, curar doenças, construir abrigos, proteger-se, aumentar a população, educar nossos filhos, fazer satélites, aviões, bombas, vacinas, músicas, poemas, esculturas e tantas obras de arte. Somos capazes de amar, de se enternecer com o voo do pássaro e com o sorriso da criança. Podemos até pensar que a Natureza está somente fora de nós, que somos os senhores de nós mesmos e de tudo que há no mundo, vindo a este para reinar sobre todas as criaturas e coisas existentes. Somos capazes de criar e de controlar, somos senhores do Tempo e do Planeta Terra, ou mais. Nisso vemos nossa arrogância e alienação com relação ao Universo e à nossa própria constituição vital.
Do pequeno osso usado como instrumento e dos primeiros sons articulados aos satélites espaciais, computadores e internet, percorremos um longo caminho de 7 milhões de anos, em contínuas bifurcações ou ramificações, onde um só caminhar prevaleceu e se mantém até hoje – do homo sapiens ao homem moderno (denominação masculina, muito comum no antropocentrismo).  
Do rosto voltado para o chão, depois para as distâncias, estamos hoje com o rosto voltado para as estrelas e para a nossa própria sutileza e refinamentos interiores. Para onde estamos indo, se é que estamos indo para algum lugar? O que nos atrai? O que nos impulsiona pela roda do tempo nesses espaços sem fim, dobrados e desdobrados de coisas e de vazios chamados Universos?  
Diante de tal refinamento interior, o ser humano pode ser levado a se perceber privilegiado, filho de um Pai Criador nascido para reinar no mundo, ou mesmo sendo o próprio Pai. Apaixonado por si mesmo, vai deixando de lado o vínculo natural que a tudo une em uma profunda e sensível Dança da Natureza. Passa a representar a si mesmo como o único Filho de Deus e se posta em um trono devastador das belezas naturais (riquezas), inclusive da vida que há em si mesmo (estilo de adoecer).
O homo sapiens sapiens demens sobreviveu, faz história, faz cultura e se afasta cada vez mais de sua antiga caverna, dos animais, dos elementos naturais, do seu corpo, de sua espontaneidade, do prazer que incendeia a mente e da convivência com o selvagem interior e abismal. Olha ele, muitas vezes, com nostalgia, para o eterno e prometido paraíso, mas sabe, pela sensibilidade e consciência, que a flecha do tempo, voraz, continua seu trajeto irreversível. Afastar-se da cultura não é possível sob pena de desaparecer; tampouco seguir pela mesma trajetória garantiria a potencialização da nossa energia vital que, de tão bloqueada e deformada, gera doenças de civilização. O que fazer, se o caminhar antropocêntrico assinala seu esgotamento e limitação frente às novas exigências humanas, sociais, psicológicas, espirituais e naturais?A Cultura Antropocêntrica legou-nos extraordinários avanços no campo da ciência, da técnica e da organização social, construiu as bases da sociedade moderna. O Iluminismo francês, o Idealismo alemão, a grandeza da razão humana e seus métodos de pensar, controlar e atuar, foram em geral aplaudidos e reverenciados como o caminho pelo qual se faria a redenção humana, o novo homem e o estágio positivo da sociedade.
Séculos se passaram desde Galileu e Descartes, levando a mente racional por caminhos de construção de modelos lógicos cada vez mais avançados, no afã de conhecer e controlar, porém baseados em fragmentações e reducionismos da realidade. Caminhos de linearidades, descontinuidades e hierarquizações que marcaram o avanço da Ciência, da Técnica, da organização do Estado e da vida social.
Adentramos no Século XXI com toda a robustez do conhecimento, da tecnologia e de uma sociedade legislada, marcando essa entrada com novos conhecimentos e novas leis. Essa entrada no novo século trouxe também à tona algumas outras perguntas essenciais à vida humana, em geral, relacionadas a uma questão vital: a relação que criamos com nós mesmos, com os outros e com a natureza, bem como suas consequências para cada um de nós, para a sociedade e para a própria Natureza.
Seguir sendo o único filho de Deus, ou mesmo sendo o próprio Deus, talvez não seja uma saída, pois essa postura, ao longo do tempo, se fragilizou ou, até mesmo, se esgotou. É evidente que ela não mais atende ao anseio de uma sociedade mais justa, esclarecida, saudável, amorosa e ecológica. Não queremos com isso negar a Ciência nem a Religião, somente dizer da urgência de um reposicionamento do ser humano com relação à Natureza e à Cultura, e mesmo com relação à presença de Deus e dos Deuses em nossas vidas e em todas as coisas que existem.
A cultura muda continuamente, mas em que direção está-se dando essa mudança? Que paradigmas orientam essa mudança? Urge novo olhar, um novo (e antigo) sentir, outros parâmetros, não apenas da razão, mas sim profundamente marcados por uma nova sensibilidade frente à vida. Novas maneiras de sentir e perceber a vida.
3.2.         PARADIGMA BIOCENTRICO
A realidade se impõe frente ao nosso conhecimento, exigindo não só novas sínteses teóricas a partir de um imenso conjunto de análises (LEONTIEV, 1982) já realizado neste século, mas parâmetros diferentes, paradigmas no entender de Kuhn (apud GLEICK, 1990:33), uma nova percepção no entender de Capra (1982). Nossa crise não é de conhecimento, mas sim de percepção. Essa é a oportunidade que se abre para uma nova maneira de ver e participar da vida.
Para perceber diferente é preciso estar em lugar diferente (por dentro e por fora), e para perceber amplo, como requer uma visão de conjunto, é preciso olhar do alto da montanha o vale, ter uma visão de altura que nos permita mover a cabeça em todas as direções. Olhar do alto para os pontos cardeais e mergulhar com uma visão de águia nos mínimos detalhes do vale, sem deixar de ver o vale e sem deixar de voar, fluir. Para olhar a realidade é preciso estar em movimento, por dentro e por fora de si mesmo, sem se congelar em um valor, conceito ou método, mas sim se manter aquecido com a contínua recriação deles.
O conhecimento e a própria sociedade, se apoiam em paradigmas (incluindo seus valores) que não só procuram explicar a realidade, como também buscam organizar (cognitiva e afetivamente) nossa percepção em relação a ela. Olhando na aparência, paradigma e realidade se confundem, se fundem, impedindo o observador de ver a realidade e mesmo de vivê-la de outros modos não configurados, não hegemônicos. O desafio para qualquer um de nós é o de distinguir a realidade do conceito, ultrapassar a inércia conceptual e existencial para vislumbrar outros arranjos fenomênicos e vivenciais (epistemologia e ontologia), assim fazendo avançar a Ciência, a Sociedade e a nossa própria vida particular e cotidiana. Significa o desafio negar a fusão do conceito com a realidade e também enfatizar a interação criativa entre o método, o empírico e o teórico, entre o sujeito, o cotidiano e o conceito.
Olhando desse modo estaremos livres para pensar e viver de comum acordo com a realidade, inclusive ousar falar da vida de outro modo, sem medo da inquisição científica, religiosa ou social.
Uma dessas ousadias é a de questionar a visão clássica da vida, pois são muitos os estereótipos, as "verdades", os fanatismos e os preconceitos a respeito, dificultando a abertura para novos olhares e novos caminhos. Neste caso, seria passar de um enfoque epistemológico tradicional a um enfoque da complexidade e da mística - processo, incerteza, totalidade, beleza e sacralidade.
Capra (1997), quando fala de Ecologia Profunda (expressão criada por Arne Naess, filósofo norueguês), no seu livro A Teia da Vida, fala de uma percepção complexa e sistêmica da vida, na qual o ser humano não está no centro. Como Naess, ele diferencia Ecologia Rasa de Ecologia Profunda e estabelece, também, diferenças entre o que chama de Ecologia Profunda e Holismo. Lovelock (1987), Margulin (1986) e outros estão na mesma direção no ato de compreender a vida como algo maior.
Francisco de Assis nos mostrou o irmão Sol e a irmã Lua, o amor incondicional a tudo e a todas as pessoas (ainda no Teocentrismo medieval). Albert Schweitzer considerou a vida e o ato de cuidar da vida como a referência maior, Arne Naess nos brindou com a Ecologia Profunda, John Wheeler nos apresentou o Princípio Antrópico, inúmeros povos falam de um Universo vivo, os místicos falam algo assim, James Lovelock nos revela a Terra como Gaya e Rolando Toro nos propôs o Princípio Biocêntrico. Todos olhando a vida como algo maior.
A história de civilizações, cosmovisões de inúmeros povos antigos e atuais, novas formas de Movimentos Sociais, Ecológicos e de Povos originários e nativos, problematizações científicas, espiritualidade e vivências místicas, nossa sensibilidade singular frente à vida e a própria Biodança, tudo isso evidencia que um novo paradigma vem se gestando, ganhando espaço na sociedade. Podemos considerar que, de algumas décadas para cá, está se adentrando em nossas vidas e em toda a humanidade, um paradigma que progressivamente vem substituindo a ideia da razão e do poder como centro da vida social e da existência humana, por um sentimento de vida, evidenciando aí o Amor. Traz a Vida como a referência maior.
Em nossa compreensão, por toda essa leitura e contribuições histórica, mística, social, cultural, científica, temos de considerar que estamos diante do Paradigma Biocêntrico, o paradigma de um novo mundo humano, o qual nos leva a sentir e perceber o viver como algo maior, o grande acontecimento da nossa existência, sendo a Vida totalidade sensível, organizadora, criativa, inteligente e sagrada.
Isso nos leva a novos sentimentos e a uma nova compreensão do Universo e das nossas vidas, numa perspectiva imanente-transcendente, pano de fundo de toda materialidade. Significa que a Vida não vem da matéria, ela é a estrutura-guia do Universo, do humano e da cultura. Nesta perspectiva advém a possibilidade de outro modo de viver, de novos valores, de uma profunda mudança individual e social que integra natureza e cultura, imanência e transcendência.
O Paradigma Biocêntrico surge de outros paradigmas que marcaram a humanidade ao longo de seu processo civilizatório. Do ponto de vista Ocidental, segundo Almeida ( ????), tivemos nos primeiros milênios da humanidade a visão cosmocêntrica, depois a teocêntrica, até aparecer no Século XVII a visão antropocêntrica, que predomina ainda hoje. No Oriente a visão monista, diferentemente da teocêntrica, se atinha à consciência e ao Todo, não como Deus, mas como, por exemplo, o Tao e a relação com o humano.
No período cosmocêntrico, que durou, hegemonicamente, por volta de 40.000 a 5.000 anos antes de Cristo (do homo sapiens à cidade de Ur), encontramos o ser humano primitivamente confuso, fusionado e depois governado por forças naturais simbolizadas deuses, como o sol, a lua, os planetas, tudo no firmamento e em toda a natureza circundante revelavam-se encantados, mágicos, sagrados e detentores da vida humana.
No teocentrismo já não são as forças da natureza que reinam e dominam o ser humano, mas sim um Ser maior, espírito onipotente, onisciente e onipresente, criador do Universo e de todas as criaturas. É o Deus de Abraão, Moisés e João Batista, que se fez homem em Jesus. Período compreendido entre Ur e a Renascença (4000 AC a 1600 DC). Inclui o Velho Testamento e o Novo Testamento, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
De 1600 DC aos dias de hoje temos o antropocentrismo, o homem em sua razão é o centro do Universo, substitui Deus, passando a ser a referência principal para o novo momento civilizatório. Razão e poder; construção experimental do conhecimento, considerando as coisas da religião (fé) separadas das coisas da ciência (matéria); multiplicação de escolas e universidades; redução e controle da natureza; avanço da nova ciência (moderna); organização racional do trabalho; desvalorização da fé, do místico e dos sentimentos de amor e vínculo; transformação do mundo em objetos e mercadorias e distanciamento do convívio com o natural; criação do Estado Moderno; destruição da natureza e enaltecimento do urbano, da inteligência, da tecnologia e do industrial; aumento da expectativa de vida; explosão do individualismo e do consumismo; tudo isso, constitui a sociedade moderna com sua ordem social baseada em um Estado de Direito.
A partir da década de 60 do Século XX, o Movimento Hippie, os movimentos ecológicos, os novos movimentos sociais, vários cientistas, artistas e espiritualistas, afirmaram o Paradigma que tem por base a Vida, denominado por Rolando Toro na década de 70 de Princípio Biocêntrico.
E hoje, cada vez mais, surgem outras vozes, como a de Leonardo Boff ao falar de uma sociedade referenciada na vida; Boaventura de Sousa Santos tratando de uma sociedade biocêntrica; as constituições da Bolívia e do Equador legalizando Pachamama e os direitos da Natureza.
Há uma crescente preocupação e efervescência com relação ao novo paradigma, que tem sua mais importante sistematização no Princípio Biocêntrico formulado por Rolando Toro em sua teoria sobre o dançar a vida - Biodança.
A vida como referência maior nos leva à outra forma de humanização, à sensível e profunda coexistência e à sacralidade do mundo. Amplia a consciência, revelando inúmeras possibilidades do viver, possível de acontecer por meio de um cultivo biocêntrico, gerador de uma cultura que emerge ano a ano no Planeta Terra, nossa moradia ecológica – a Cultura Biocêntrica.
 Para civilizações antigas e inúmeros povos originários que resistem até hoje, para vários místicos e cientistas (inclusive da Física e da Biologia) e, especialmente, para Rolando Toro, tudo no Universo está vivo, coexiste e está relacionado com um princípio maior – a Vida. Isso implica dizer que a matéria surge de um princípio organizador que cria e recria o mundo, guia o Universo, mediante processos sutis e complexos de combinação, recombinação, simetria, assimetria, caos, ordem, vazios, coerências, incoerências, temporalidade, espacialidade, fora do tempo e fora do espaço, conectividade visível e invisível, paradoxos, bifurcações, impermanências, presença, harmonia, colapsos, rupturas, beleza, entropia, neguentropia e “ação fantasmagórica à distância” (Einstein falando sobre a ação não-local).
Essa é a dança da vida, uma empolgante sinfonia que a consciência ampliada é capaz de captá-la brotando e se manifestando em pulsação, diversidade e conectividade. O ser humano é capaz de sentir e perceber essa misteriosa, poderosa, sutil, bela e solitária abstração sensível, esse princípio harmônico de caos-ordem, vazio, transcendente, organizador, criativo e inteligente.
La fuerza que nos conduce
es la misma que enciende el sol,
que anima los mares
y hace florecer los cerezos.
La fuerza que nos mueve
es la misma que agita las semillas
con su mensaje inmemorial de vida.
La danza genera el destino
bajo las mismas leyes
que vinculan la flor a la brisa.
Bajo el girasol de armonía
todos somos uno.
(Rolando Toro, 1991)

Consideramos, nessa nova e antiga percepção da vida, o Universo uma teia inacabada, explícita e implícita de consciência, sensibilidade e informação, que se organiza e evolui em função da vida. Ele se complexifica através de sua própria diversidade e conectividade local e não-local, e evolui por si mesmo mediante relações pouco conhecidas, principalmente entre gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca, vazio quântico e energias sutis. É a Dança de Deus.
Se Deus não joga os dados ou se Deus joga os dados, isso não é o principal, pois as duas questões são aspectos diferentes da mesma complexidade e sutileza. Concordamos com Raúl Terrén e Rolando Toro quando dizem que "Deus joga os dados e sempre ganha", quer dizer, desconhecemos as trajetórias da Grande Dança, mas o resultado é neguentrópico, belo e misterioso.
A compreensão de um Universo que se organiza para favorecer a vida, numa dança sutil de caos e ordem, pode parecer sem sentido, ambiciosa, entretanto, estudos recentes (LOVELOCK, 1991), voltados para uma Ciência da Vida, apontam na direção de uma visão mais profunda da vida, como algo mais complexo, sistêmico, auto-regulável e capaz de manifestar-se como um Planeta-Vivo (Gaia).
A percepção da Terra, ou do Universo, como ser vivo, é antiga, vem dos pré-sumerianos. Ciência e Religião trataram o tema de maneira diferente depois de Galileu, porém, na fase atual do conhecimento científico e do resgate da antiga religiosidade (Tradição), nos encontramos frente à profundas convergências entre elas acerca do macro e do microcosmo (CASSÉ & AUDOUZE, 1991). Hoje podemos dizer que a noção de vida como algo de dimensão planetária ou cósmica está presente na Ciência, nas experiências místicas e na vida comum de qualquer pessoa sensível. Investigar e abrir-se a essa presença, a essa estrutura-guia, é o grande desafio que nos deslocará para novo paradigma, o biocêntrico, o qual ultrapassa o panorama holístico, a tendência de o todo se manifestar na diversidade e esta, por conseguinte, revelar em sua potencialidade o todo. Este novo paradigma vai além, se manifesta em um sentimento sagrado do Universo, de todas as coisas existentes, sentimento este que tem como origem a vivência biocêntrica.
O entender que isto é assim ultrapassa os limites das formas atuais de pensar e se aprofunda na vivência mesma do ser em sua viagem pelo mundo de si mesmo, no qual se encontra a unicidade do espaço interior com o espaço exterior (CAMPBELL, 1991). Tal clareza vem da vivência imanente-transcendente da identidade pessoal e de tudo o mais.

3.3.   PARTICIPAR E TECER A VIDA
Para onde nos leva esse novo modo de sentir e perceber a vida, o Paradigma Biocêntrico? A uma abertura existencial que nos impulsiona a participar e tecer a vida no aqui-e-agora social com amor. Leva-nos a construir, no dia-a-dia, sentimentos e valores pró-vida, uma cultura biocêntrica, mesmo sabendo que, para muita gente, isso é apenas mais uma das utopias de quem não tem o que fazer, de sonhadores. Mas, para muitos outros, que têm o que fazer, o sentido da vida está aí.
Aos poucos (é a nossa esperança e a nossa luta), um novo (e antigo) sentido do humano e da vida poderá prevalecer sobre a cultura da fragmentação e do individualismo, assim fortalecendo uma cultura da vida que, por sua vez, aprofundará este sentido nos corações e nas mentes das novas gerações.
A emergência do amor e a manifestação de novos sentimentos e valores impulsionam o Século XXI para a direção de uma sociedade biocêntrica, embora saibamos da existência de graves obstáculos à sua semeadura, cultivo e colheita, tais como o racionalismo, a ideologia masculina, a xenofobia, o preconceito social, o fascismo, o neoliberalismo, o fanatismo e as relações de dominação e exploração.
Estamos navegando em complexos sistemas de comunicação, poderosas redes informáticas que revelam, mediante a tecnologia da computação, o quão fazemos parte e nos movemos em uma tecitura maior, em um fluxo, em uma rede, onde o particular contém o universal e este o particular, e muito mais. Fala-se da aldeia global, de globalização, como uma grande novidade inevitável. A aldeia global, a nossa casa Terra, é óbvia, não do ponto de vista do neoliberalismo e do seu "merchandising" (falso livre-mercado, falsa competição - basta ver o sistema de vigilância estados-unidenses Echelon, que se utiliza para isso dos satélites Intelsat), que nos impõem uma realidade fabricada e controlada pela ideologia imperialista constantemente atualizada.
A nossa casa Terra emerge de um sentimento sagrado, biocêntrico, sendo um novo parâmetro para nos localizarmos e nos movermos no mundo, mover-se na direção de outros povos e nações a partir do reconhecimento e do valor das diferentes culturas. No caso, do Brasil, tomar como referência não o Norte (nortear) ou o Oriente (orientar), mas sim o Sul (sulear); não a estrela Polar ou a "Estrela dos Reis Magos", mas sim o Cruzeiro do Sul, conforme proposição de Campos (apud FREIRE, 1994, p.219). Polaris é importante para o Hemisfério Norte, porém, para o Hemisfério Sul, o que precisa valer de fato é o Cruzeiro do Sul. Assim haverá integração e não dominação, não um sobre o outro, pois no espaço não há o em cima nem o embaixo, nem um lado nem outro lado, a não ser que convencionemos a partir de um referencial, e este pode mudar para se tornar múltiplo. Em vez de darmos as costas para o Cruzeiro do Sul e ficarmos de frente para a Estrela Polar, como é comum desde a escola primária, a fim de nos situarmos no mundo e reconhecermos o lugar onde estamos (no caso, América do Sul, Brasil), em vez de negarmos ou mesmo substituirmos nossa história, nossa cultura, nosso valor, por outros próprios do Hemisfério Norte, necessitamos ficar de frente para o Sul, para o Cruzeiro, pois assim poderemos olhar o mundo e a nossa casa a partir do que realmente somos, diferentes e semelhantes - humanos.
Posicionados desse modo, podemos dialogar, conviver, criar e transcender. Sul, Norte, Oriente e Ocidente, todos em uma roda de diálogo e convivência, dançando a diversidade e superando a padronização cultural e ideológica da globalização, que tanta exclusão social gera, inclusive nos países do Norte.  
Nosso mundo continua sendo um lugar de contrastes perversos (desigualdades sociais e dominação), apesar de contar com sofisticados sistemas de conhecimento, de direito, de produção, de transportes e de comunicação. Mesmo assim, é um mundo propício à humanização e à Natureza, à Vida, um terreno fértil para a construção de uma grande roda de etnias em meio à Natureza - uma roda de amor, de aceitação e de criação em meio às diferenças e semelhanças entre indivíduos e povos.
Isso ainda é uma utopia, mas a integração cultural (vivência transcultural do amor) é possível, desde que participemos ativa e amorosamente da promoção da vida. Esse grande sonho, já sonhado por muitos que já morreram e por muitos que estão lutando hoje por ele, em todos os lugares do Planeta Terra, um dia poderá ser realidade. Ver, por exemplo, a caminhada de Gandhi, Albert Schweitzer, Dom Hélder Câmara, Martin Luther King, Paulo Freire, Rolando Toro, Edgar Morin, Carl Rogers, O´Neil, Dragão do Mar, Rigoberta Menchú, Chico Mendes, Nuvem Vermelha, Nélson Mandela, Isadora Duncan, Leila Diniz, Joana D´Arc, madre Teresa de Calcutá, Indira Ghandi, Marie Curie, Chiquinha Gonzaga, Frida Cahlo, Cora Coralina, Patrícia Galvão, Papisa Joana, Maria Tomásia, Bárbara de Alencar e tantos outros. Ver, também, os movimentos sociais e ecológicos, o movimento dos povos andinos e da floresta, do Conselho Mundial das 13 Avós, de muitas ONGs e de tanta gente que desconhecemos e que faz um profundo e amoroso trabalho em seu cotidiano.
Já começamos a democratizar a democracia e a reverenciar o Numinoso e a Natureza. A voz dos que não têm voz, já está sendo ouvida, longe e perto. É voz de coragem, voz de solidariedade, voz de esperança, voz de amor. 
Um sonho como esse nasce do olhar e do gesto generoso de um guerreiro amante, de um rosto voltado para as estrelas, de uma nova (e antiga) sensibilidade que permite captar a beleza da vida se fazendo em cada rosto, em cada ser vivo, em cada partícula do Universo.
É preciso não se dispersar, não perder de vista o sonho. É preciso continuar tecendo e vivendo a vida em suas manifestações mais profundas de amor, espiritualidade, equidade social e ecologia. Não podemos evitar o rosto da Natureza e da humanidade diante de nós e em nós, o rosto de cada passante, pois podemos correr o risco de não mais reconhecê-lo como revelação da vida, do sagrado e da nossa condição de humano. 
A Cultura Biocêntrica assinala um novo passo que já vem sendo dado por um crescente número de pessoas em todos os países, que hoje tem a consciência ampliada do verdadeiro sentido da vida, do humano, da sociedade, do Planeta Terra e do Universo. Manifestações pela paz, pelo direito à vida, contra as guerras e a fome, pelo fim da violência, em defesa da natureza, pelo amor, passam a ocupar cada vez mais o cenário social e político de nossa época. Em meio a tantas desesperanças o surgimento de novos sentimentos e valores de vida ganha força e se espalha como questão atual para o futuro da humanidade e do Planeta Terra.
Estamos diante de um novo aprendizado existencial, de uma nova (e antiga) compreensão do humano, onde a consciência se aprofunda e se amplia mediante novas práticas de encontro, educativas, sociais, terapêuticas e espirituais, voltadas para a construção coletiva e individual de uma sociedade biocêntrica. Novas atitudes, conhecimentos, outras formas de aprender e se desenvolver, sentimentos e valores pró-vida semeados e cultivados na escola e universidades, no trabalho, nas religiões, nas comunidades, nas famílias, nas ruas, nos movimentos sociais e em instituições de toda ordem.
Dar as mãos é um profundo e decisivo ato político, ato de amor, como dizia Rolando Toro (1991).
Autor: Cezar Wagner