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18 de julho de 2014




















3.  CULTURA BIOCÊNTRICA 
A caminhada civilizatória nos trouxe até aqui, um momento de profundos sentimentos e reflexões coletivas sobre a vida, a natureza, o social, a cultura, o espírito, o conhecimento, a tecnologia e, mesmo, sobre nossa existência singular e cotidiana.
A sociedade moderna em sua base antropocêntrica quase nos dá a certeza de uma superioridade que se manifesta em quase todos os aspectos da vida social, laboral, científica e tecnológica. Os resultados dessa forma de agir demonstram o aparente sucesso da razão e da modernidade em detrimento da vivência do amor, da oferenda e do agradecimento entre os seres humanos e destes para com a Natureza.
Que podemos fazer, então, frente a essa suposta superioridade? Que podemos dizer sobre as doenças de civilização no mundo atual? Da destruição ambiental? Do individualismo e consumismo? Das guerras? Da pobreza? Da exploração desenfreada da Natureza e dos próprios seres humanos? Da depressão? Da violência? Do Desamor?

3.1. CAMINHAR ANTROPOCÊNTRICO
Avançamos, iluminamos, cada vez mais, o nosso caminhar, fazendo estradas e indo a lugares insuspeitados, por dentro e por fora de nós mesmos. Pensamos (erroneamente) que nada nos detém, nem a Natureza com sua energia vital que, em muitos instantes, se manifesta de forma poderosa e dramática no cenário civilizatório urbano e rural, como se viu recentemente nas imagens televisivas do Tsunami no Oceano Índico, dos furacões passando pela Flórida e Nova Órleans, do terremoto no Paquistão e da seca na Amazônia.
Somos capazes de construir e reconstruir, produzir alimentos, viajar, curar doenças, construir abrigos, proteger-se, aumentar a população, educar nossos filhos, fazer satélites, aviões, bombas, vacinas, músicas, poemas, esculturas e tantas obras de arte. Somos capazes de amar, de se enternecer com o voo do pássaro e com o sorriso da criança. Podemos até pensar que a Natureza está somente fora de nós, que somos os senhores de nós mesmos e de tudo que há no mundo, vindo a este para reinar sobre todas as criaturas e coisas existentes. Somos capazes de criar e de controlar, somos senhores do Tempo e do Planeta Terra, ou mais. Nisso vemos nossa arrogância e alienação com relação ao Universo e à nossa própria constituição vital.
Do pequeno osso usado como instrumento e dos primeiros sons articulados aos satélites espaciais, computadores e internet, percorremos um longo caminho de 7 milhões de anos, em contínuas bifurcações ou ramificações, onde um só caminhar prevaleceu e se mantém até hoje – do homo sapiens ao homem moderno (denominação masculina, muito comum no antropocentrismo).  
Do rosto voltado para o chão, depois para as distâncias, estamos hoje com o rosto voltado para as estrelas e para a nossa própria sutileza e refinamentos interiores. Para onde estamos indo, se é que estamos indo para algum lugar? O que nos atrai? O que nos impulsiona pela roda do tempo nesses espaços sem fim, dobrados e desdobrados de coisas e de vazios chamados Universos?  
Diante de tal refinamento interior, o ser humano pode ser levado a se perceber privilegiado, filho de um Pai Criador nascido para reinar no mundo, ou mesmo sendo o próprio Pai. Apaixonado por si mesmo, vai deixando de lado o vínculo natural que a tudo une em uma profunda e sensível Dança da Natureza. Passa a representar a si mesmo como o único Filho de Deus e se posta em um trono devastador das belezas naturais (riquezas), inclusive da vida que há em si mesmo (estilo de adoecer).
O homo sapiens sapiens demens sobreviveu, faz história, faz cultura e se afasta cada vez mais de sua antiga caverna, dos animais, dos elementos naturais, do seu corpo, de sua espontaneidade, do prazer que incendeia a mente e da convivência com o selvagem interior e abismal. Olha ele, muitas vezes, com nostalgia, para o eterno e prometido paraíso, mas sabe, pela sensibilidade e consciência, que a flecha do tempo, voraz, continua seu trajeto irreversível. Afastar-se da cultura não é possível sob pena de desaparecer; tampouco seguir pela mesma trajetória garantiria a potencialização da nossa energia vital que, de tão bloqueada e deformada, gera doenças de civilização. O que fazer, se o caminhar antropocêntrico assinala seu esgotamento e limitação frente às novas exigências humanas, sociais, psicológicas, espirituais e naturais?A Cultura Antropocêntrica legou-nos extraordinários avanços no campo da ciência, da técnica e da organização social, construiu as bases da sociedade moderna. O Iluminismo francês, o Idealismo alemão, a grandeza da razão humana e seus métodos de pensar, controlar e atuar, foram em geral aplaudidos e reverenciados como o caminho pelo qual se faria a redenção humana, o novo homem e o estágio positivo da sociedade.
Séculos se passaram desde Galileu e Descartes, levando a mente racional por caminhos de construção de modelos lógicos cada vez mais avançados, no afã de conhecer e controlar, porém baseados em fragmentações e reducionismos da realidade. Caminhos de linearidades, descontinuidades e hierarquizações que marcaram o avanço da Ciência, da Técnica, da organização do Estado e da vida social.
Adentramos no Século XXI com toda a robustez do conhecimento, da tecnologia e de uma sociedade legislada, marcando essa entrada com novos conhecimentos e novas leis. Essa entrada no novo século trouxe também à tona algumas outras perguntas essenciais à vida humana, em geral, relacionadas a uma questão vital: a relação que criamos com nós mesmos, com os outros e com a natureza, bem como suas consequências para cada um de nós, para a sociedade e para a própria Natureza.
Seguir sendo o único filho de Deus, ou mesmo sendo o próprio Deus, talvez não seja uma saída, pois essa postura, ao longo do tempo, se fragilizou ou, até mesmo, se esgotou. É evidente que ela não mais atende ao anseio de uma sociedade mais justa, esclarecida, saudável, amorosa e ecológica. Não queremos com isso negar a Ciência nem a Religião, somente dizer da urgência de um reposicionamento do ser humano com relação à Natureza e à Cultura, e mesmo com relação à presença de Deus e dos Deuses em nossas vidas e em todas as coisas que existem.
A cultura muda continuamente, mas em que direção está-se dando essa mudança? Que paradigmas orientam essa mudança? Urge novo olhar, um novo (e antigo) sentir, outros parâmetros, não apenas da razão, mas sim profundamente marcados por uma nova sensibilidade frente à vida. Novas maneiras de sentir e perceber a vida.
3.2.         PARADIGMA BIOCENTRICO
A realidade se impõe frente ao nosso conhecimento, exigindo não só novas sínteses teóricas a partir de um imenso conjunto de análises (LEONTIEV, 1982) já realizado neste século, mas parâmetros diferentes, paradigmas no entender de Kuhn (apud GLEICK, 1990:33), uma nova percepção no entender de Capra (1982). Nossa crise não é de conhecimento, mas sim de percepção. Essa é a oportunidade que se abre para uma nova maneira de ver e participar da vida.
Para perceber diferente é preciso estar em lugar diferente (por dentro e por fora), e para perceber amplo, como requer uma visão de conjunto, é preciso olhar do alto da montanha o vale, ter uma visão de altura que nos permita mover a cabeça em todas as direções. Olhar do alto para os pontos cardeais e mergulhar com uma visão de águia nos mínimos detalhes do vale, sem deixar de ver o vale e sem deixar de voar, fluir. Para olhar a realidade é preciso estar em movimento, por dentro e por fora de si mesmo, sem se congelar em um valor, conceito ou método, mas sim se manter aquecido com a contínua recriação deles.
O conhecimento e a própria sociedade, se apoiam em paradigmas (incluindo seus valores) que não só procuram explicar a realidade, como também buscam organizar (cognitiva e afetivamente) nossa percepção em relação a ela. Olhando na aparência, paradigma e realidade se confundem, se fundem, impedindo o observador de ver a realidade e mesmo de vivê-la de outros modos não configurados, não hegemônicos. O desafio para qualquer um de nós é o de distinguir a realidade do conceito, ultrapassar a inércia conceptual e existencial para vislumbrar outros arranjos fenomênicos e vivenciais (epistemologia e ontologia), assim fazendo avançar a Ciência, a Sociedade e a nossa própria vida particular e cotidiana. Significa o desafio negar a fusão do conceito com a realidade e também enfatizar a interação criativa entre o método, o empírico e o teórico, entre o sujeito, o cotidiano e o conceito.
Olhando desse modo estaremos livres para pensar e viver de comum acordo com a realidade, inclusive ousar falar da vida de outro modo, sem medo da inquisição científica, religiosa ou social.
Uma dessas ousadias é a de questionar a visão clássica da vida, pois são muitos os estereótipos, as "verdades", os fanatismos e os preconceitos a respeito, dificultando a abertura para novos olhares e novos caminhos. Neste caso, seria passar de um enfoque epistemológico tradicional a um enfoque da complexidade e da mística - processo, incerteza, totalidade, beleza e sacralidade.
Capra (1997), quando fala de Ecologia Profunda (expressão criada por Arne Naess, filósofo norueguês), no seu livro A Teia da Vida, fala de uma percepção complexa e sistêmica da vida, na qual o ser humano não está no centro. Como Naess, ele diferencia Ecologia Rasa de Ecologia Profunda e estabelece, também, diferenças entre o que chama de Ecologia Profunda e Holismo. Lovelock (1987), Margulin (1986) e outros estão na mesma direção no ato de compreender a vida como algo maior.
Francisco de Assis nos mostrou o irmão Sol e a irmã Lua, o amor incondicional a tudo e a todas as pessoas (ainda no Teocentrismo medieval). Albert Schweitzer considerou a vida e o ato de cuidar da vida como a referência maior, Arne Naess nos brindou com a Ecologia Profunda, John Wheeler nos apresentou o Princípio Antrópico, inúmeros povos falam de um Universo vivo, os místicos falam algo assim, James Lovelock nos revela a Terra como Gaya e Rolando Toro nos propôs o Princípio Biocêntrico. Todos olhando a vida como algo maior.
A história de civilizações, cosmovisões de inúmeros povos antigos e atuais, novas formas de Movimentos Sociais, Ecológicos e de Povos originários e nativos, problematizações científicas, espiritualidade e vivências místicas, nossa sensibilidade singular frente à vida e a própria Biodança, tudo isso evidencia que um novo paradigma vem se gestando, ganhando espaço na sociedade. Podemos considerar que, de algumas décadas para cá, está se adentrando em nossas vidas e em toda a humanidade, um paradigma que progressivamente vem substituindo a ideia da razão e do poder como centro da vida social e da existência humana, por um sentimento de vida, evidenciando aí o Amor. Traz a Vida como a referência maior.
Em nossa compreensão, por toda essa leitura e contribuições histórica, mística, social, cultural, científica, temos de considerar que estamos diante do Paradigma Biocêntrico, o paradigma de um novo mundo humano, o qual nos leva a sentir e perceber o viver como algo maior, o grande acontecimento da nossa existência, sendo a Vida totalidade sensível, organizadora, criativa, inteligente e sagrada.
Isso nos leva a novos sentimentos e a uma nova compreensão do Universo e das nossas vidas, numa perspectiva imanente-transcendente, pano de fundo de toda materialidade. Significa que a Vida não vem da matéria, ela é a estrutura-guia do Universo, do humano e da cultura. Nesta perspectiva advém a possibilidade de outro modo de viver, de novos valores, de uma profunda mudança individual e social que integra natureza e cultura, imanência e transcendência.
O Paradigma Biocêntrico surge de outros paradigmas que marcaram a humanidade ao longo de seu processo civilizatório. Do ponto de vista Ocidental, segundo Almeida ( ????), tivemos nos primeiros milênios da humanidade a visão cosmocêntrica, depois a teocêntrica, até aparecer no Século XVII a visão antropocêntrica, que predomina ainda hoje. No Oriente a visão monista, diferentemente da teocêntrica, se atinha à consciência e ao Todo, não como Deus, mas como, por exemplo, o Tao e a relação com o humano.
No período cosmocêntrico, que durou, hegemonicamente, por volta de 40.000 a 5.000 anos antes de Cristo (do homo sapiens à cidade de Ur), encontramos o ser humano primitivamente confuso, fusionado e depois governado por forças naturais simbolizadas deuses, como o sol, a lua, os planetas, tudo no firmamento e em toda a natureza circundante revelavam-se encantados, mágicos, sagrados e detentores da vida humana.
No teocentrismo já não são as forças da natureza que reinam e dominam o ser humano, mas sim um Ser maior, espírito onipotente, onisciente e onipresente, criador do Universo e de todas as criaturas. É o Deus de Abraão, Moisés e João Batista, que se fez homem em Jesus. Período compreendido entre Ur e a Renascença (4000 AC a 1600 DC). Inclui o Velho Testamento e o Novo Testamento, o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.
De 1600 DC aos dias de hoje temos o antropocentrismo, o homem em sua razão é o centro do Universo, substitui Deus, passando a ser a referência principal para o novo momento civilizatório. Razão e poder; construção experimental do conhecimento, considerando as coisas da religião (fé) separadas das coisas da ciência (matéria); multiplicação de escolas e universidades; redução e controle da natureza; avanço da nova ciência (moderna); organização racional do trabalho; desvalorização da fé, do místico e dos sentimentos de amor e vínculo; transformação do mundo em objetos e mercadorias e distanciamento do convívio com o natural; criação do Estado Moderno; destruição da natureza e enaltecimento do urbano, da inteligência, da tecnologia e do industrial; aumento da expectativa de vida; explosão do individualismo e do consumismo; tudo isso, constitui a sociedade moderna com sua ordem social baseada em um Estado de Direito.
A partir da década de 60 do Século XX, o Movimento Hippie, os movimentos ecológicos, os novos movimentos sociais, vários cientistas, artistas e espiritualistas, afirmaram o Paradigma que tem por base a Vida, denominado por Rolando Toro na década de 70 de Princípio Biocêntrico.
E hoje, cada vez mais, surgem outras vozes, como a de Leonardo Boff ao falar de uma sociedade referenciada na vida; Boaventura de Sousa Santos tratando de uma sociedade biocêntrica; as constituições da Bolívia e do Equador legalizando Pachamama e os direitos da Natureza.
Há uma crescente preocupação e efervescência com relação ao novo paradigma, que tem sua mais importante sistematização no Princípio Biocêntrico formulado por Rolando Toro em sua teoria sobre o dançar a vida - Biodança.
A vida como referência maior nos leva à outra forma de humanização, à sensível e profunda coexistência e à sacralidade do mundo. Amplia a consciência, revelando inúmeras possibilidades do viver, possível de acontecer por meio de um cultivo biocêntrico, gerador de uma cultura que emerge ano a ano no Planeta Terra, nossa moradia ecológica – a Cultura Biocêntrica.
 Para civilizações antigas e inúmeros povos originários que resistem até hoje, para vários místicos e cientistas (inclusive da Física e da Biologia) e, especialmente, para Rolando Toro, tudo no Universo está vivo, coexiste e está relacionado com um princípio maior – a Vida. Isso implica dizer que a matéria surge de um princípio organizador que cria e recria o mundo, guia o Universo, mediante processos sutis e complexos de combinação, recombinação, simetria, assimetria, caos, ordem, vazios, coerências, incoerências, temporalidade, espacialidade, fora do tempo e fora do espaço, conectividade visível e invisível, paradoxos, bifurcações, impermanências, presença, harmonia, colapsos, rupturas, beleza, entropia, neguentropia e “ação fantasmagórica à distância” (Einstein falando sobre a ação não-local).
Essa é a dança da vida, uma empolgante sinfonia que a consciência ampliada é capaz de captá-la brotando e se manifestando em pulsação, diversidade e conectividade. O ser humano é capaz de sentir e perceber essa misteriosa, poderosa, sutil, bela e solitária abstração sensível, esse princípio harmônico de caos-ordem, vazio, transcendente, organizador, criativo e inteligente.
La fuerza que nos conduce
es la misma que enciende el sol,
que anima los mares
y hace florecer los cerezos.
La fuerza que nos mueve
es la misma que agita las semillas
con su mensaje inmemorial de vida.
La danza genera el destino
bajo las mismas leyes
que vinculan la flor a la brisa.
Bajo el girasol de armonía
todos somos uno.
(Rolando Toro, 1991)

Consideramos, nessa nova e antiga percepção da vida, o Universo uma teia inacabada, explícita e implícita de consciência, sensibilidade e informação, que se organiza e evolui em função da vida. Ele se complexifica através de sua própria diversidade e conectividade local e não-local, e evolui por si mesmo mediante relações pouco conhecidas, principalmente entre gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca, vazio quântico e energias sutis. É a Dança de Deus.
Se Deus não joga os dados ou se Deus joga os dados, isso não é o principal, pois as duas questões são aspectos diferentes da mesma complexidade e sutileza. Concordamos com Raúl Terrén e Rolando Toro quando dizem que "Deus joga os dados e sempre ganha", quer dizer, desconhecemos as trajetórias da Grande Dança, mas o resultado é neguentrópico, belo e misterioso.
A compreensão de um Universo que se organiza para favorecer a vida, numa dança sutil de caos e ordem, pode parecer sem sentido, ambiciosa, entretanto, estudos recentes (LOVELOCK, 1991), voltados para uma Ciência da Vida, apontam na direção de uma visão mais profunda da vida, como algo mais complexo, sistêmico, auto-regulável e capaz de manifestar-se como um Planeta-Vivo (Gaia).
A percepção da Terra, ou do Universo, como ser vivo, é antiga, vem dos pré-sumerianos. Ciência e Religião trataram o tema de maneira diferente depois de Galileu, porém, na fase atual do conhecimento científico e do resgate da antiga religiosidade (Tradição), nos encontramos frente à profundas convergências entre elas acerca do macro e do microcosmo (CASSÉ & AUDOUZE, 1991). Hoje podemos dizer que a noção de vida como algo de dimensão planetária ou cósmica está presente na Ciência, nas experiências místicas e na vida comum de qualquer pessoa sensível. Investigar e abrir-se a essa presença, a essa estrutura-guia, é o grande desafio que nos deslocará para novo paradigma, o biocêntrico, o qual ultrapassa o panorama holístico, a tendência de o todo se manifestar na diversidade e esta, por conseguinte, revelar em sua potencialidade o todo. Este novo paradigma vai além, se manifesta em um sentimento sagrado do Universo, de todas as coisas existentes, sentimento este que tem como origem a vivência biocêntrica.
O entender que isto é assim ultrapassa os limites das formas atuais de pensar e se aprofunda na vivência mesma do ser em sua viagem pelo mundo de si mesmo, no qual se encontra a unicidade do espaço interior com o espaço exterior (CAMPBELL, 1991). Tal clareza vem da vivência imanente-transcendente da identidade pessoal e de tudo o mais.

3.3.   PARTICIPAR E TECER A VIDA
Para onde nos leva esse novo modo de sentir e perceber a vida, o Paradigma Biocêntrico? A uma abertura existencial que nos impulsiona a participar e tecer a vida no aqui-e-agora social com amor. Leva-nos a construir, no dia-a-dia, sentimentos e valores pró-vida, uma cultura biocêntrica, mesmo sabendo que, para muita gente, isso é apenas mais uma das utopias de quem não tem o que fazer, de sonhadores. Mas, para muitos outros, que têm o que fazer, o sentido da vida está aí.
Aos poucos (é a nossa esperança e a nossa luta), um novo (e antigo) sentido do humano e da vida poderá prevalecer sobre a cultura da fragmentação e do individualismo, assim fortalecendo uma cultura da vida que, por sua vez, aprofundará este sentido nos corações e nas mentes das novas gerações.
A emergência do amor e a manifestação de novos sentimentos e valores impulsionam o Século XXI para a direção de uma sociedade biocêntrica, embora saibamos da existência de graves obstáculos à sua semeadura, cultivo e colheita, tais como o racionalismo, a ideologia masculina, a xenofobia, o preconceito social, o fascismo, o neoliberalismo, o fanatismo e as relações de dominação e exploração.
Estamos navegando em complexos sistemas de comunicação, poderosas redes informáticas que revelam, mediante a tecnologia da computação, o quão fazemos parte e nos movemos em uma tecitura maior, em um fluxo, em uma rede, onde o particular contém o universal e este o particular, e muito mais. Fala-se da aldeia global, de globalização, como uma grande novidade inevitável. A aldeia global, a nossa casa Terra, é óbvia, não do ponto de vista do neoliberalismo e do seu "merchandising" (falso livre-mercado, falsa competição - basta ver o sistema de vigilância estados-unidenses Echelon, que se utiliza para isso dos satélites Intelsat), que nos impõem uma realidade fabricada e controlada pela ideologia imperialista constantemente atualizada.
A nossa casa Terra emerge de um sentimento sagrado, biocêntrico, sendo um novo parâmetro para nos localizarmos e nos movermos no mundo, mover-se na direção de outros povos e nações a partir do reconhecimento e do valor das diferentes culturas. No caso, do Brasil, tomar como referência não o Norte (nortear) ou o Oriente (orientar), mas sim o Sul (sulear); não a estrela Polar ou a "Estrela dos Reis Magos", mas sim o Cruzeiro do Sul, conforme proposição de Campos (apud FREIRE, 1994, p.219). Polaris é importante para o Hemisfério Norte, porém, para o Hemisfério Sul, o que precisa valer de fato é o Cruzeiro do Sul. Assim haverá integração e não dominação, não um sobre o outro, pois no espaço não há o em cima nem o embaixo, nem um lado nem outro lado, a não ser que convencionemos a partir de um referencial, e este pode mudar para se tornar múltiplo. Em vez de darmos as costas para o Cruzeiro do Sul e ficarmos de frente para a Estrela Polar, como é comum desde a escola primária, a fim de nos situarmos no mundo e reconhecermos o lugar onde estamos (no caso, América do Sul, Brasil), em vez de negarmos ou mesmo substituirmos nossa história, nossa cultura, nosso valor, por outros próprios do Hemisfério Norte, necessitamos ficar de frente para o Sul, para o Cruzeiro, pois assim poderemos olhar o mundo e a nossa casa a partir do que realmente somos, diferentes e semelhantes - humanos.
Posicionados desse modo, podemos dialogar, conviver, criar e transcender. Sul, Norte, Oriente e Ocidente, todos em uma roda de diálogo e convivência, dançando a diversidade e superando a padronização cultural e ideológica da globalização, que tanta exclusão social gera, inclusive nos países do Norte.  
Nosso mundo continua sendo um lugar de contrastes perversos (desigualdades sociais e dominação), apesar de contar com sofisticados sistemas de conhecimento, de direito, de produção, de transportes e de comunicação. Mesmo assim, é um mundo propício à humanização e à Natureza, à Vida, um terreno fértil para a construção de uma grande roda de etnias em meio à Natureza - uma roda de amor, de aceitação e de criação em meio às diferenças e semelhanças entre indivíduos e povos.
Isso ainda é uma utopia, mas a integração cultural (vivência transcultural do amor) é possível, desde que participemos ativa e amorosamente da promoção da vida. Esse grande sonho, já sonhado por muitos que já morreram e por muitos que estão lutando hoje por ele, em todos os lugares do Planeta Terra, um dia poderá ser realidade. Ver, por exemplo, a caminhada de Gandhi, Albert Schweitzer, Dom Hélder Câmara, Martin Luther King, Paulo Freire, Rolando Toro, Edgar Morin, Carl Rogers, O´Neil, Dragão do Mar, Rigoberta Menchú, Chico Mendes, Nuvem Vermelha, Nélson Mandela, Isadora Duncan, Leila Diniz, Joana D´Arc, madre Teresa de Calcutá, Indira Ghandi, Marie Curie, Chiquinha Gonzaga, Frida Cahlo, Cora Coralina, Patrícia Galvão, Papisa Joana, Maria Tomásia, Bárbara de Alencar e tantos outros. Ver, também, os movimentos sociais e ecológicos, o movimento dos povos andinos e da floresta, do Conselho Mundial das 13 Avós, de muitas ONGs e de tanta gente que desconhecemos e que faz um profundo e amoroso trabalho em seu cotidiano.
Já começamos a democratizar a democracia e a reverenciar o Numinoso e a Natureza. A voz dos que não têm voz, já está sendo ouvida, longe e perto. É voz de coragem, voz de solidariedade, voz de esperança, voz de amor. 
Um sonho como esse nasce do olhar e do gesto generoso de um guerreiro amante, de um rosto voltado para as estrelas, de uma nova (e antiga) sensibilidade que permite captar a beleza da vida se fazendo em cada rosto, em cada ser vivo, em cada partícula do Universo.
É preciso não se dispersar, não perder de vista o sonho. É preciso continuar tecendo e vivendo a vida em suas manifestações mais profundas de amor, espiritualidade, equidade social e ecologia. Não podemos evitar o rosto da Natureza e da humanidade diante de nós e em nós, o rosto de cada passante, pois podemos correr o risco de não mais reconhecê-lo como revelação da vida, do sagrado e da nossa condição de humano. 
A Cultura Biocêntrica assinala um novo passo que já vem sendo dado por um crescente número de pessoas em todos os países, que hoje tem a consciência ampliada do verdadeiro sentido da vida, do humano, da sociedade, do Planeta Terra e do Universo. Manifestações pela paz, pelo direito à vida, contra as guerras e a fome, pelo fim da violência, em defesa da natureza, pelo amor, passam a ocupar cada vez mais o cenário social e político de nossa época. Em meio a tantas desesperanças o surgimento de novos sentimentos e valores de vida ganha força e se espalha como questão atual para o futuro da humanidade e do Planeta Terra.
Estamos diante de um novo aprendizado existencial, de uma nova (e antiga) compreensão do humano, onde a consciência se aprofunda e se amplia mediante novas práticas de encontro, educativas, sociais, terapêuticas e espirituais, voltadas para a construção coletiva e individual de uma sociedade biocêntrica. Novas atitudes, conhecimentos, outras formas de aprender e se desenvolver, sentimentos e valores pró-vida semeados e cultivados na escola e universidades, no trabalho, nas religiões, nas comunidades, nas famílias, nas ruas, nos movimentos sociais e em instituições de toda ordem.
Dar as mãos é um profundo e decisivo ato político, ato de amor, como dizia Rolando Toro (1991).
Autor: Cezar Wagner


Um comentário:

  1. O Cezar Wagner dedica sua vida a esse PROJETO/AÇÃO, que é a BIODANÇA, uma maravilha, cujas iniciações e vivências são de difícil descrição, pois cada pessoa é única em sua maneira de sentir, de ser, embora tod@s estejamos conectados - queiramos ou não - no UNO.

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