A POSSIBILIDADE DE
FAZER MEDIAÇÕES SÓCIOPSICOLÕGICAS E ÉTNICAS (DECODIFICAÇÕES, TRADUÇÕES,
CONVIVÊNCIAS) EM PSICOLOGIA COMUNITÁRIA NA PERSPECTIVA DA AMÉRICA PROFUNDA.
Cezar
Wagner de Lima Góis[1]
Luciane
Alves de Oliviera[2]
Sara
Cavalcante Góis[3]
Alexsandra
Silva[4]
RESUMO
Nesse
artigo problematizamos a aproximação da Psicologia Comunitária com a ideia de América
Profunda, considerando-a capaz de contribuir por meio de mediações e traduções na
construção de conhecimentos e na recriação da vida social, étnica e humana como
diversidade local. Buscamos clarificar a questão desde o olhar da libertação e
das epistemologias do sul, e apresentar experiências que afirmem esse modo de
fazer Psicologia Comunitária. Tratamos da colonialidade relacionando-a com o
que fazer em Psicologia Comunitária e enfatizamos a importância da mediação
sóciopsicológica/étnica, das traduções de olhares, e os aspectos que constituem
essa mediação: o dialógico, o vivencial e o participante. Para finalizar essas
reflexões, relatamos de modo breve algumas experiências de facilitação e de
pesquisa realizadas por nós no Ceará, especialmente na capital, Fortaleza, e no
município de Sobral.
Palavras-chaves: Psicologia Comunitária, América
Profunda, mediação, sujeito da comunidade.
1. INTRODUÇÃO
Pensar
a Psicologia Comunitária na realidade social de hoje é reconhecer a
pluralidade, considerar a diversidade epistemológica. Não há possibilidade de seguirmos
por caminhos de colonialidade (Quijano, 2010). Esta, proveniente do
colonialismo, se refere a um aspecto grave do padrão mundial do poder
capitalista imposto ao mundo, caracterizado por classificações raciais/étnicas
como base para esse padrão de poder operar no mundo por meio de dimensões
materiais, sociais e subjetivas, inclusive epistêmicas. Em Psicologia
Comunitária implica assumir outra atitude epistemológica, aberta às cosmovisões
locais e baseada nas epistemologias do Sul (Sousa Santos, 2010), e da
libertação (Dussel, 1977; Martin-Baró, 1998; Freire, 2011). Cada povo, cada comunidade
social, tem seu modo de vida e seu próprio saber, o qual pode traduzir outros e
ser traduzido por estes. Isso significa reconhecer e aceitar a pluralidade étnica,
social e epistêmica, e não mais permanecer no olhar da colonialidade, que a
tudo traduz e nos entrega sempre como o válido e o verdadeiro. Compreender
também que essa tradução no interior de cada povo e classe social, ou entre
povos e classes sociais, com possibilidade de recriação a partir daí, se
encontra numa condição mediadora complexa, numa abertura dialógica, afetiva,
ética e transdisciplinar.
Nesse
olhar podemos reconhecer o rosto antigo, escondido, humilhado, mas que resiste
e é criativo (Kusch, 1986; Dussel, 1977; Menezes, 2006; Martin-Baró, 1998; Freire,
1979). É o rosto dos povos originários, dos quilombolas, dos mestiços e
afro-descendentes pobres, rosto que resiste e perdura nos países atuais da
América.
Nessas
condições historicamente dadas, fazer mediações, traduções entre as
cosmovisões, os pensares, em espaços de convivencialidade (Boff, 1999) implica,
por um lado, reconhecer a grave desigualdade étnica e social, e por outro,
considerar a possibilidade de mediações, sem desconsiderar o protesto e o confronto
como meio para se chegar à negociação e à convivência democrática entre os
diversos da América.
Diante
dessas questões atuais, o desafio que surge para a Psicologia Comunitária na
América Profunda é o de facilitar processos de mediação psicossocial/étnica que
contemplem decodificações, traduções e convivencialidade no interior de uma
sociedade e/ou entre povos, trabalhar com a população pobre (mestiços e
afro-descendentes em geral), também por fora das políticas públicas, e aproximar-se
mais dos povos originários e quilombolas.
2. AMÉRICA PROFUNDA
Contrapondo-se
à América dos colonizadores, encontramos as ideias de Ameríndia (Dussel, 2010)
e de América Profunda (Kusch, 1986). Ambas estão relacionadas com os povos
originários. Entretanto, não podemos
negar o processo civilizatório pós Colombo, porém é preciso considerar nessa
questão a palavra profunda como a
característica central do que hoje é a América, diferentemente da ideia de
América Profunda apresentada por Rodolfo Kusch. Dar-lhe outro significado, que
se traduz como aceitar a pluralidade, o mais antigo (povos originários), o conquistador
(povos europeus), o traficado (povos africanos), o quilombola (remanescentes
dos povos africanos que vivem em Quilombos), o afro-descendente e o mestiço das
sociedades atuais, como uma realidade histórica que está aí e que pode
significar o solo para uma consciência americana plural e libertária, mais de democracia
do que de dominação, exploração e pobreza (Cidade, Moura Jr. & Ximenes,
2010). Uma utopia, um horizonte ético-político referente para os passos atuais,
para a recriação epistemológica e a possibilidade da convivência democrática.
3. PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA E AMÉRICA PROFUNDA
O
que buscamos em meio a essas questões de fundo é fazer uma Psicologia
Comunitária (Góis, 2005; Ximenes & Góis, 2010) cada vez mais ciência do
sujeito comunitário e da mediação sócio-psicológica e étnica, um meio para se
construir e se reconstruir conhecimentos em meio à pluralidade de saberes e de
práticas, bem como favorecer a expressão e fortalecimento de identidades
pessoais, sociais e culturais.
Entendemos
que a Psicologia Comunitária é capaz de
fazer mediações (decodificações, traduções e convivências) nos espaços das
comunidades, tanto no sentido da construção de conhecimentos (acadêmicos,
profissionais e populares), como no sentido da facilitação de processos
sóciopsicológicos e étnicos que contribuam para a recriação do indivíduo em
sujeito de sua vida e da comunidade. Compreender a Psicologia
Comunitária na América atual é revirá-la para aprumá-la no rumo das
epistemologias da libertação, das epistemologias do sul, da potencialidade e
potência inerentes à própria localidade social e étnica, comunitária.
Trazer
essa questão para o interior da Psicologia Comunitária é apoiar-nos na
possibilidade de reconhecer, acercar-se e implicar-se no universo local para
decodificar, mediar presenças e convivências, facilitar traduções e
compreensões entre práticas e saberes locais de uma mesma cultura ou de
distintas culturas e subculturas presentes nas comunidades e em suas relações
com outros lugares, até mesmo de outras etnias, com os saberes das diversas
disciplinas acadêmicas e áreas profissionais que tentam uma aproximação para
agir nas realidades comunitárias.
A
Psicologia Comunitária pode lidar com mediações de saberes, de sentidos, de sentimentos,
de ações e de recriações solidárias do humano, do cultural e do social, de
facilitação de processos nos quais os indivíduos criam a si como sujeitos
individuais portadores da condição de sujeito coletivo (Touraine, 2007).
Posicionar-se
na mediação é se implicar com indivíduos e grupos para com eles construir
conhecimentos e ações por meio do diálogo, da vivência e da ação-participante.
O diálogo como meio de aproximar e aprofundar significados e sentidos (Freire,
1994); a vivência como caminho de expressão de sentimentos (Toro, 1991) e de
construção de sentidos, de estar com o outro no mundo; e a ação-participante (Fals
Borda, 1978) como presença do sujeito individual e equidade de saberes. Diálogo,
vivência e ação-participante são constituintes de um só processo de mediação
onde ciência e política não se separam..
4. RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
À guisa de pequenos relatos, apresentamos
a seguir algumas experiências de mediação referenciadas nas epistemologias do
sul e da libertação. Mencionaremos: Método clínico-comunitário; Lagamar - a
luta pelo direito à cidade; Dialogando sobre a longevidade em Sobral; Um
panorama das crianças e jovens da periferia: entre experiências, reflexões e
tessituras; e, por fim, Jovem, violência e participação comunitária.
. Método
Clínico-Comunitário
O método é dialógico-vivencial-ativo e foi
inicialmente aplicado em um bairro da periferia de Fortaleza. Contém quatro
estratégias metodológicas básicas entrelaçadas.
. Inserção
e ação na comunidade
O profissional se envolve nas
principais questões ou problemas vividos pela população, os quais são claros e
frequentemente debatidos nos encontros comunitários. Ele deixa de ser um
técnico fechado em um único local de atendimento para ser um profissional ativo
que participa da vida da comunidade.
. Prática Clínica - Terapia pelo Encontro
É uma
terapia popular em grupo Góis (2012), uma prática clínica de prevenção em saúde
mental. Tem como objetivo facilitar processos existenciais que
permitam ao morador superar ou evitar que o sofrimento lhe impeça de melhorar
sua vida e a vida da comunidade. É formada por quatro linhas de facilitação que
se mesclam continuamente e se separam em certas condições do processo do grupo.
Isso quer dizer que no processo de uma sessão pode-se passar por todas, por
três, por duas ou por uma só das linhas de facilitação. A primeira e a segunda
linhas estão relacionadas com a fala profunda, quer dizer, a fala que vem do
próprio fluxo de vida de quem fala, é expressiva e envolve ou atrai a quem está
escutando; é reveladora do que a própria pessoa sente e pensa a respeito de si
e do mundo. Dar-se quando o morador fala de seu sofrimento e de sentimentos
positivos também presentes em meio à sua dor, isto é, acontece quando ele fala
de si e também quando dialoga com outros sobre como vê o mundo e o que poderia
fazer para melhorar sua comunidade. Quando a fala é narrativa de vida, a pessoa
fala dela mesma, chamamos de fala existencial; quando se fala do mundo é problematizadora.
A fala existencial e a fala problematizadora constituem a fala profunda. A
terceira
linha de facilitação é a dramatização (Moreno, 1990; Boal, 2002). O ato
dramático é um meio de retomar vivências gravadas na história individual e
coletiva, trazê-las ao presente como vivência do presente e não do passado,
facilitando ao participante a condição de protagonista e espectador, com
outros, de si mesmo. Cria o distanciamento necessário à manifestação da
consciência do vivido, em que o material psíquico acumulado por repressões é
transformado em instante vivido e elaborado como realidade presente.
A
quarta e última linha de facilitação é a vivência, a qual nos traz de forma
cristalina a qualidade do vivido. Surge da intensificação sensível e amorosa do
corpo através da dança, de uma relação íntima corpo-mundo, uma corporeidade
vivida (Merleau-Ponty, 1993), pulsando a partir de um mundo corporal,
expressivo e relacional. O instante é vivido com grande intensidade pela pessoa
e envolve, além de processos subjetivos, a sinestesia, a motricidade, as
funções viscerais, as emoções e os sentimentos (Toro, 1991).
.
Integração da prática clínica com atividades comunitárias, políticas
públicas e terceiro setor na comunidade
A prática clínica está imbricada na
dinâmica comunitária, fazendo parte de um todo que denominamos de vida
comunitária. O participante da prática clínica tem a oportunidade de também
participar em outras atividades na comunidade, já que a clínica não acontece de
forma separada da luta dos moradores, da vida em grupos solidários nem do apoio
social informal (Oliveira, 2003) tão presente nas comunidades. Tampouco
separada das políticas públicas presentes no lugar.
. Lagamar - A luta dos moradores pelo direito à cidade
Morar
nua cidade em franco crescimento e de especulação imobiliária é algo desafiante
para a população pobre, uma situação que na maioria das vezes os moradores são transferidos
para lugares mais distantes, de acesso difícil. São mal indenizados e, por
isso, é comum não terem condições para comprar uma casa nesses lugares
indicados para a remoção deles. No Lagamar, área de um bairro de Fortaleza com
uma população de 12.000 moradores, em geral mestiços e oriundos em sua maioria
do sertão do Ceará, situada em um local de grande valorização fundiária, isso
iria acontecer.
Do
Plano-Diretor da cidade, que foi enviado para a Câmara de Vereadores de
Fortaleza, foi retirada a definição do Lagamar como Zona Especial de Interesse
Social – ZEIS, medida que levaria os moradores a uma completa desproteção
social, urbana e fundiária. Sem ser ZEIS, os moradores do Lagamar correriam o
grave risco de remoção. A maioria das lideranças tradicionais da área estava
desiludida, em razão do boicote que Prefeitura e Vereadores realizavam,
deixando as lideranças desinformadas e impotentes.
Partindo dessa situação, algumas
lideranças da Fundação Marco de Bruin, criada pelo antigo movimento popular do
Lagamar, procuraram a nós com o convite para trabalharmos juntos no sentido de reverter
a situação e garantir aos moradores o direito ao lugar.
O trabalho com os moradores se
pautou por mediações dialógicas, vivenciais e participantes, inicialmente entre
eles, já que a área estava social e politicamente desorganizada para qualquer
luta comunitária. Inúmeras reuniões, círculos de cultura, vivências, encontros em
quarteirões e expressão da arte popular foram realizados ao longo de 04 meses,
diariamente. Daí se descobriu o caminho de andar com determinação, uma marcha
popular para chegar a Câmara dos Vereadores e ocupá-la sem violência até que a
questão fosse resolvida. Foi um passo importante e decisivo, realizado por
crianças, jovens, adultos e idosos. Outros passos foram necessários, novos
encontros, reuniões, círculos de cultura e vivências, e mais duas marchas
realizadas em direção a Prefeitura da cidade de Fortaleza.
Um projeto de lei foi criado em
conjunto Moradores-Prefeitura, todo negociado em comissões populares e técnicas,
ponto a ponto, e enviado para a Câmara dos Vereadores. Diante de uma comitiva
de moradores, o projeto foi aprovado na Câmara, definindo assim o Lagamar como
zona especial de interesse social, prioridade para investimentos públicos na
cidade, regularização fundiária e proteção contra a especulação imobiliária.
O processo de mediação
moradores-moradores na comunidade foi rico em criatividade, sentimentos, ações,
enfrentamentos entre eles, negociação e cooperação, trazendo à consciência de inúmeros
moradores a dignidade e a capacidade de luta, antes bastante enfraquecida.
Dialogando sobre a
longevidade em Sobral
A
expectativa de vida aumentada em diversos povos advém de diferentes fenômenos,
que mesmo permeados de diversas contradições, sem dúvida é um ganho
civilizatório impar na espécie humana (Oliveira, 2003). Mesmo considerando as
diferentes formas de envelhecer numa realidade de desigualdade como a nossa, onde
tal processo vivido por pessoas de condições de vida mais abastadas é diametralmente
distinto do vivido por pessoas de vida sofrida, empobrecida e reduzida de
possibilidade. Urge pensar o envelhecimento em sua condição coletiva, inserido
num contexto social, cultural, econômico e étnico. Tais concepções sobre a
longevidade estão presentes no Laboratório de Estudos sobre a Longevidade –
LAELON, curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
Uma
experiência nossa a partir dessas preocupações foi a do I Fórum “Dialogando
sobre a Longevidade”, ação do projeto de extensão “Vida longa e feliz para
todos” em Sobral, município de 197.613 hab, sendo 13.944 idosos (IBGE, 2010). Na
maioria dos municípios brasileiros, as discussões e ações nas temáticas da
longevidade humana eram reduzidas e fragmentadas, isoladas de uma percepção
mais ampla da vida municipalidade. O interesse do fórum era suscitar a temática
da longevidade a partir da seguinte constatação: Estamos vivendo mais,
envelhecendo, e o que estamos fazendo ou planejando para que nossa cidade seja
favorável para que a vida seja longa e feliz para todos? Necessitávamos iniciar
uma problematização sobre o direito de continuar vivendo com qualidade mesmo
vivendo muito? É possível vencer o preconceito e o desconhecimento sobre o
processo de envelhecer, enfrentar os desafios nos diversos âmbitos e setores da
sociedade, tais como saúde, educação, assistência, cultura, lazer, transporte,
urbanização, valores, convívio intergeracional e ética?
O
evento foi realizado no campus universitário, aberto a comunidade sobralense.
Para que o fórum fosse um espaço de trocas de saberes e práticas, onde os
diversos tivessem direito à voz, trazendo reflexões novas sobre esse novo tempo
de viver muito, buscou-se garantir e valorizar a participação de todos. Havia a
preocupação para que estivessem presentes pessoas de diversas origens sociais,
culturais, econômicas, intelectuais, étnicas, etárias, moradores, profissionais
e políticos. Convidamos estudantes universitários, professores, profissionais
liberais, profissionais das políticas públicas de assistência, educação, saúde,
lazer, desporto, urbanização, trabalho e renda, previdência, comunidades da agricultura
familiar e permacultores, quilombolas, povo originário Tremembé, organizações
não-governamentais, lideres espontâneos de grupos de idosos, de moradores,
representantes religiosos, pessoas referencias de saúde na comunidade, que
geralmente são idosas, tais como: raizeiras, benzedeiras, parteiras; também
vereadores, representantes do executivo municipal, dos conselhos de saúde, do
idoso, da educação e tutelar, gerontólogos e geriatras. Participaram em torno
de aproximadamente 150 pessoas em atividades que duraram um dia inteiro.
A
metodologia dialógica-vivencial (Góis, 2001), foi utilizada por meio de círculos
de cultura (Freire, 2011), vivências biocêntricas (Toro, 1991) e
arte-identidade (Góis, 2008). Iniciamos os trabalhos com vivências de integração,
onde as pessoas puderam se apresentar e se encontrar com muitas outras. A
seguir, os membros do Laelon apresentaram o laboratório e a proposta do
encontro, fechando esse momento com um vídeo organizado pelo grupo. Partimos
para os trabalhos em círculos de cultura, com o tema gerador do encontro:
“Estamos vivendo mais, envelhecendo, e agora? O que pensamos e devemos fazer
para que a vida seja longa e feliz para todos? Depois, foram compartilhados
trabalhos científicos relacionados com o tema da longevidade, experiências
populares como a do grupo de bordadeiras, experiências de plantios orgânicos
conduzidos pelos idosos da comunidade agrícola presente, experiências de
cuidados com a saúde apresentados pelos pajés de povos originários,
apresentação de trabalhos realizados pela secretaria de assistência e
profissionais da estratégia de saúde da família, e experiência de apoio
emocional e espiritual conduzida por líder religioso.
À tarde, tivemos apresentações de arte e
cultura de pessoas ou grupos que quisessem partilhar sua expressão sensível.
Houve apresentação de escultura, flores e frutos da terra colhidos pelos
agricultores, artesanatos, poesias, pinturas, esculturas – expressão da identidade
cultural. Em seguida voltamos aos círculos de cultura, com o tema gerador: O
que podemos fazer individualmente e em comunidade, grupos, espaços políticos e
de trabalho para construirmos o que sonhamos de vida longa e feliz para todos. Daí
seguiu-se para a síntese dos círculos de cultura, as quais foram apresentadas de
diferentes formas criativas.
Gerou-se
um documento do fórum, onde entre outras coisas se propôs o aumento da
participação dos diferentes grupos sociais, culturais e étnicos presentes nos
conselhos do idoso; compromisso de todos em inserir a temática da longevidade
em seus diversos lugares de atuação e comunidades com diferentes grupos etários;
e estimular encontros como esses. O encontro foi finalizado com apresentações
culturais diversas, como cantos, músicas e danças.
A
criação desses espaços propicia a mediação e a tradução entre saberes e
práticas diversas, favorecendo assim uma maior aproximação social e étnica,
consciência plural, abertura à convivência e o aumento das vontades de
intercâmbio entre os diversos.
Pensar
sobre a infância e a juventude na América Profunda é reconhecer a diversidade
étnica, social, cultural, territorial, de gênero, etc., que vai desde as raças,
culturas, origens, até os gostos, escolhas, problemas, potenciais, sonhos, que
trazem como cenário macrossocial, a condição em que se encontra grande maioria
dessas crianças e jovens. É preciso questionar essa realidade, uma vez que os
jovens constituem 40% da população da América espanhola e portuguesa (Kliksberg,
2006). Isso se configura como um desafio para nossa atuação, em que precisamos
estar atentos a uma formação cultural com foco na promoção da cidadania e
analisar criticamente como o conhecimento cientifico/profissional está sendo
utilizado. Analisar esse cenário significa direcionar nossas atuações e
conhecimentos no
sentido de uma
práxis transformadora (Nepomuceno;
Ximenes, et. al., 2008), assim como compreender os impactos
da pobreza sobre a juventude pobre da América (Feitosa & Dimenstein, 2004).
Diante
dessa realidade marcada por uma estrutura autoritária e excludente (Pinheiro,
2004), questionamos se as políticas públicas e os profissionais estão atuando
de modo ajustado ou não a essa lógica de dominação. Uma questão importante é
mediar processos que levem educadores sociais a compreenderem suas formas de
atuação em grupos de crianças e de jovens e a
importância de se abrir mão de intervenções autoritárias (Góis, 2008).
Na cidade de Sobral, interior do Ceará, trabalhamos com um grupo
de educadores sociais, buscando com eles problematizar a necessidade de se
atuar mediante grupos e os modos de facilitar esses grupos, formados por crianças
e jovens da periferia. Dividimos os educadores em 6 subgrupos,
com uma média de 7 pessoas cada. Usamos a técnica da
colagem como mediadora de significados e sentidos sobre a facilitação em grupo
e o modo de facilitar. O envolvimento dos participantes e o desejo deles
de falar sobre a questão surgiram progressivamente e logo o diálogo o
aparecimento de percepções democráticas sobre a importância do fazer
democrático e com dinamicidade a facilitação do grupo. Também se viu a possibilidade
de aprender diante do inesperado trazido pelos jovens e crianças.
À
medida que o diálogo se desenrolava era feita uma ligação com as seguintes
características de um facilitador de grupo, conforme apontado por Góis (2008):
“Inserção comunitária/grupal; potência pessoal; capacidade de vínculo; conhecimento
científico e técnico; manejo democrático do grupo; capacidade de apoiar de dar
limites; fluidez verbal; didática”. Outros olhares foram surgindo no diálogo
entre os educadores, como o de não só ver uma juventude marginalizada e
oprimida, mas também ver várias juventudes e todas elas tendo potencialidades e
capacidades capazes de se desenvolverem em um espaço democrático de facilitação
dos grupos de crianças e de jovens. Ficou patente entre os educadores o
diferencial que construíram para se trabalhar com grupos de adolescentes, perceberam
que as práticas anteriores, distanciadas, individualizadas, autoritárias não
cabiam na situação atual de trabalho com crianças e jovens da periferia, por
serem práticas de colonialidade.
Violência, Juventude e Participação
Comunitária
A violência tem um caráter histórico-cultural,
é impossível entendê-la fora do contexto social. (Santos, Alessio, & Amp; Silva,
2009). Nesta perspectiva, a violência urbana pode ser vista como representação
social, expressão simbólica que constrói subjetivamente determinados sistemas
de certos espaços e pessoas, comportamentos e fatores de organização das
relações sociais. Quando um é classificado como violento, é também pela
dimensão simbólica. Por isso se estabelece numa sociedade uma visão estigmatizada
e territorial de bairros classificados como pobres, violentos, por seus
próprios moradores (Barreira, Almeida, Brasil, & Amp; Freitas, 2010). Existe
violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem direto ou
indireto, forte ou sutil, causando danos a uma ou mais pessoas em um grau
variável, na sua integridade física, sua integridade moral, bens materiais ou em
suas participações simbólicas e culturais. Além disso, significa que a
violência envolve o uso ilegítimo da força, a coerção e opressão explícita ou
velada (Michaud, 1989). A violência também afeta desigualmente a população,
dependendo da classe social, gênero, idade, raça e etnia (Ramos e Carvalho,
2007). Os jovens são os mais afetados pelos diferentes efeitos e manifestações
da distribuição desigual de renda (Waiselfisz, 2013).
Para aprofundar essa questão, realizamos
uma pesquisa (Cavalcante Góis, 2011) em dois bairros pobres de Fortaleza com o
objetivo de verificar a relação entre violência, juventude e participação
comunitária. Os participantes que compuseram a amostra foram escolhidos
aleatoriamente entre os jovens residentes dos bairros; 110 pessoas com idades
entre 15 a 23 anos de idade, dos quais 53,6% homens 46,4% mulheres, 20% das
pessoas não estudavam e 59,1% da amostra estava participando de alguma
atividade na Comunidade. As variáveis estudadas foram: a violência em suas
dimensões de vitimização, exercício e percepção da mesma e a participação
comunitária. Para isso, desenvolveu-se um instrumento com ações do cotidiano
onde os entrevistados responderam se algum ato violento tinha se passado com
eles, se tinham praticado ou em que grau avaliavam tal ato como violento.
Também havia um instrumento que media a participação comunitária dos
entrevistados no ano anterior ao da pesquisa em relação à frequência, ao papel
e a forma de participação, destinada apenas para aqueles que responderam a uma
pergunta inicial, dizendo se tinha participado em qualquer atividade na
comunidade no período avaliado.
Os
resultados indicaram que os mais envolvidos em atividades comunitárias são
aqueles que mais valorizam as ações violentas como violentas, ou que eles estão
mais conscientes da violência. A frequência com que este jovem participa de
atividades na comunidade é associada negativamente com violência, salientando
que aqueles que participam na comunidade mais vezes por semana são aqueles que
praticam menos a violência. Também, o presente estudo revela que a vitimização
e uma menor participação na frequência de atividades comunitárias prevê 27,4%
do exercício da violência na juventude investigada. Da mesma forma, Parnes
(2008) diz que a exposição à violência pode limitar a capacidade dos jovens
para lidar adequadamente com suas emoções e comportamentos.
Na
amostra estudada, em geral, a dimensão participação comunitária, principalmente
a frequência nas atividades que são oferecidas à comunidade, está diretamente
relacionada com uma menor prática da violência e com uma melhor percepção ou
valoração desta, e indiretamente com uma menor vitimização. Isso poderia estar
indicando que o jovem envolvido em atividades comunitárias tem uma percepção
melhor sobre o que é violência e vitimização, e a exerce menos. Ou, o que é o
mesmo, jovens envolvidos em atividades comunitárias mostram uma maior
capacidade para lidar com a violência. Para Elias (2011) a convivência é
essencial para a redução da violência e a participação é um elemento central
nas teorias da democracia, onde o que se opõe à cidadania é a violência.
Poderíamos dizer, talvez, que a participação comunitária, principalmente pela
forma como é realizada nos bairros, permite que os jovens desenvolvam
comportamentos de vida, cidadania e comunidade, consequentemente, reduzindo
seus comportamentos destrutivos para si, para com o outro e para sua
comunidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos em um
momento de radicalidade e de repensar caminhos para o que fazer em Psicologia
Comunitária. Tentar, por meio de problematizações e atuações, evidenciar a
possibilidade de contribuir com a pesquisa e com a facilitação de processos
comunitários mais livres da colonialidade. Implicar, por exigência de outro
horizonte ético-político, o acadêmico e o profissional da Psicologia
Comunitária numa realidade humana, social e étnica a partir das epistemologias
do sul e da libertação. Contribuir para esse novo momento da Psicologia
Comunitária, em seus desafios, possibilidades e limitações, sem deixar de
considerar que ciência e ideologia andam juntas.
Os relatos das
experiências aqui apresentadas procuram trazer a questão da mediação em uma
realidade plural, em seus aspectos de diálogo, vivência e ação-participante,
como condição integrada e facilitadora da práxis de libertação. Sabemos que
outros trabalhos estão sendo realizados tomando como referencial a América
Profunda, e com o nosso queremos contribuir para que esse espaço das
epistemologias do sul e da libertação possa influir mais sobre o pensamento
acadêmico, sobre a Psicologia e, especificamente, sobre a Psicologia
Comunitária e a vida nas comunidades sociais e étnicas dessas terras de
América.
6.
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[1]
Doutor em Psicologia, Universidade de Barcelona. Professor de Psicologia, Universidade
Federal do Ceará (UFC) e membro da Universidade Biocêntrica.
[2]
Doutora em Psicogerontologia Universidade de Barcelona. Professora de Psicologia
do Desenvolvimento do Curso de enfermagem da UFC.
[3]
Psicóloga e mestre em Psicologia Social, Universidade de Granada e membro da
Universidade Biocêntrica.
[4]
Psicóloga, mestranda em Psicologia-UFC e integrante do Núcleo de Psicologia
Comunitária (Nucom), UFC.
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