3. CULTURA BIOCÊNTRICA
A caminhada
civilizatória nos trouxe até aqui, um momento de profundos sentimentos e reflexões coletivas sobre a vida, a natureza, o social, a cultura, o espírito,
o conhecimento, a tecnologia e, mesmo, sobre nossa existência singular e
cotidiana.
A sociedade
moderna em sua base antropocêntrica quase nos dá a certeza de uma superioridade
que se manifesta em quase todos os aspectos da vida social, laboral, científica
e tecnológica. Os resultados dessa forma de agir demonstram o aparente sucesso
da razão e da modernidade em detrimento da vivência do amor, da oferenda e do
agradecimento entre os seres humanos e destes para com a Natureza.
Que podemos
fazer, então, frente a essa suposta superioridade? Que podemos dizer sobre as
doenças de civilização no mundo atual? Da destruição ambiental? Do
individualismo e consumismo? Das guerras? Da pobreza? Da exploração desenfreada
da Natureza e dos próprios seres humanos? Da depressão? Da violência? Do
Desamor?
3.1. CAMINHAR ANTROPOCÊNTRICO
Avançamos,
iluminamos, cada vez mais, o nosso caminhar, fazendo estradas e indo a lugares
insuspeitados, por dentro e por fora de nós mesmos. Pensamos (erroneamente) que
nada nos detém, nem a Natureza com sua energia vital que, em muitos instantes,
se manifesta de forma poderosa e dramática no cenário civilizatório urbano e
rural, como se viu recentemente nas imagens televisivas do Tsunami no Oceano
Índico, dos furacões passando pela Flórida e Nova Órleans, do terremoto no
Paquistão e da seca na Amazônia.
Somos capazes de
construir e reconstruir, produzir alimentos, viajar, curar doenças, construir
abrigos, proteger-se, aumentar a população, educar nossos filhos, fazer
satélites, aviões, bombas, vacinas, músicas, poemas, esculturas e tantas obras
de arte. Somos capazes de amar, de se enternecer com o voo do pássaro e com o
sorriso da criança. Podemos até pensar que a Natureza está somente fora de nós,
que somos os senhores de nós mesmos e de tudo que há no mundo, vindo a este
para reinar sobre todas as criaturas e coisas existentes. Somos capazes de
criar e de controlar, somos senhores do Tempo e do Planeta Terra, ou mais.
Nisso vemos nossa arrogância e alienação com relação ao Universo e à nossa
própria constituição vital.
Do pequeno osso
usado como instrumento e dos primeiros sons articulados aos satélites
espaciais, computadores e internet, percorremos um longo caminho de 7 milhões
de anos, em contínuas bifurcações ou ramificações, onde um só caminhar
prevaleceu e se mantém até hoje – do homo sapiens ao homem moderno (denominação
masculina, muito comum no antropocentrismo).
Do rosto voltado
para o chão, depois para as distâncias, estamos hoje com o rosto voltado para
as estrelas e para a nossa própria sutileza e refinamentos interiores. Para
onde estamos indo, se é que estamos indo para algum lugar? O que nos atrai? O
que nos impulsiona pela roda do tempo nesses espaços sem fim, dobrados e
desdobrados de coisas e de vazios chamados Universos?
Diante de tal
refinamento interior, o ser humano pode ser levado a se perceber privilegiado,
filho de um Pai Criador nascido para reinar no mundo, ou mesmo sendo o próprio
Pai. Apaixonado por si mesmo, vai deixando de lado o vínculo natural que a tudo
une em uma profunda e sensível Dança da Natureza. Passa a representar a si
mesmo como o único Filho de Deus e se posta em um trono devastador das belezas
naturais (riquezas), inclusive da vida que há em si mesmo (estilo de adoecer).
O homo sapiens
sapiens demens sobreviveu, faz história, faz cultura e se afasta cada vez mais
de sua antiga caverna, dos animais, dos elementos naturais, do seu corpo, de
sua espontaneidade, do prazer que incendeia a mente e da convivência com o
selvagem interior e abismal. Olha ele, muitas vezes, com nostalgia, para o
eterno e prometido paraíso, mas sabe, pela sensibilidade e consciência, que a
flecha do tempo, voraz, continua seu trajeto irreversível. Afastar-se da
cultura não é possível sob pena de desaparecer; tampouco seguir pela mesma
trajetória garantiria a potencialização da nossa energia vital que, de tão
bloqueada e deformada, gera doenças de civilização. O que fazer, se o caminhar
antropocêntrico assinala seu esgotamento e limitação frente às novas exigências
humanas, sociais, psicológicas, espirituais e naturais?A Cultura
Antropocêntrica legou-nos extraordinários avanços no campo da ciência, da
técnica e da organização social, construiu as bases da sociedade moderna. O
Iluminismo francês, o Idealismo alemão, a grandeza da razão humana e seus
métodos de pensar, controlar e atuar, foram em geral aplaudidos e reverenciados
como o caminho pelo qual se faria a redenção humana, o novo homem e o estágio
positivo da sociedade.
Séculos se
passaram desde Galileu e Descartes, levando a mente racional por caminhos de
construção de modelos lógicos cada vez mais avançados, no afã de conhecer e
controlar, porém baseados em fragmentações e reducionismos da realidade.
Caminhos de linearidades, descontinuidades e hierarquizações que marcaram o
avanço da Ciência, da Técnica, da organização do Estado e da vida social.
Adentramos no
Século XXI com toda a robustez do conhecimento, da tecnologia e de uma
sociedade legislada, marcando essa entrada com novos conhecimentos e novas
leis. Essa entrada no novo século trouxe também à tona algumas outras perguntas
essenciais à vida humana, em geral, relacionadas a uma questão vital: a relação
que criamos com nós mesmos, com os outros e com a natureza, bem como suas
consequências para cada um de nós, para a sociedade e para a própria Natureza.
Seguir sendo o
único filho de Deus, ou mesmo sendo o próprio Deus, talvez não seja uma saída,
pois essa postura, ao longo do tempo, se fragilizou ou, até mesmo, se esgotou.
É evidente que ela não mais atende ao anseio de uma sociedade mais justa,
esclarecida, saudável, amorosa e ecológica. Não queremos com isso negar a
Ciência nem a Religião, somente dizer da urgência de um reposicionamento do ser
humano com relação à Natureza e à Cultura, e mesmo com relação à presença de
Deus e dos Deuses em nossas vidas e em todas as coisas que existem.
A cultura muda
continuamente, mas em que direção está-se dando essa mudança? Que paradigmas
orientam essa mudança? Urge novo olhar, um novo (e antigo) sentir, outros
parâmetros, não apenas da razão, mas sim profundamente marcados por uma nova
sensibilidade frente à vida. Novas maneiras de sentir e perceber a vida.
3.2.
PARADIGMA BIOCENTRICO
A realidade se
impõe frente ao nosso conhecimento, exigindo não só novas sínteses teóricas a
partir de um imenso conjunto de análises (LEONTIEV, 1982) já realizado neste
século, mas parâmetros diferentes, paradigmas no entender de Kuhn (apud GLEICK, 1990:33), uma nova
percepção no entender de Capra (1982). Nossa crise não é de conhecimento, mas
sim de percepção. Essa é a oportunidade que se abre para uma nova maneira de
ver e participar da vida.
Para perceber
diferente é preciso estar em lugar diferente (por dentro e por fora), e para
perceber amplo, como requer uma visão de conjunto, é preciso olhar do alto da
montanha o vale, ter uma visão de altura que nos permita mover a cabeça em
todas as direções. Olhar do alto para os pontos cardeais e mergulhar com uma
visão de águia nos mínimos detalhes do vale, sem deixar de ver o vale e sem
deixar de voar, fluir. Para olhar a realidade é preciso estar em movimento, por
dentro e por fora de si mesmo, sem se congelar em um valor, conceito ou método,
mas sim se manter aquecido com a contínua recriação deles.
O conhecimento e
a própria sociedade, se apoiam em paradigmas (incluindo seus valores) que não
só procuram explicar a realidade, como também buscam organizar (cognitiva e
afetivamente) nossa percepção em relação a ela. Olhando na aparência, paradigma
e realidade se confundem, se fundem, impedindo o observador de ver a realidade
e mesmo de vivê-la de outros modos não configurados, não hegemônicos. O desafio
para qualquer um de nós é o de distinguir a realidade do conceito, ultrapassar
a inércia conceptual e existencial para vislumbrar outros arranjos fenomênicos
e vivenciais (epistemologia e ontologia), assim fazendo avançar a Ciência, a
Sociedade e a nossa própria vida particular e cotidiana. Significa o desafio
negar a fusão do conceito com a realidade e também enfatizar a interação
criativa entre o método, o empírico e o teórico, entre o sujeito, o cotidiano e
o conceito.
Olhando desse
modo estaremos livres para pensar e viver de comum acordo com a realidade,
inclusive ousar falar da vida de outro modo, sem medo da inquisição científica,
religiosa ou social.
Uma dessas
ousadias é a de questionar a visão clássica da vida, pois são muitos os
estereótipos, as "verdades", os fanatismos e os preconceitos a
respeito, dificultando a abertura para novos olhares e novos caminhos. Neste
caso, seria passar de um enfoque epistemológico tradicional a um enfoque da
complexidade e da mística - processo, incerteza, totalidade, beleza e
sacralidade.
Capra (1997),
quando fala de Ecologia Profunda (expressão criada por Arne Naess,
filósofo norueguês), no seu livro A Teia da Vida, fala de uma percepção
complexa e sistêmica da vida, na qual o ser humano não está no centro. Como
Naess, ele diferencia Ecologia Rasa de Ecologia Profunda e estabelece, também,
diferenças entre o que chama de Ecologia Profunda e Holismo. Lovelock (1987),
Margulin (1986) e outros estão na mesma direção no ato de compreender a vida
como algo maior.
Francisco
de Assis nos mostrou o irmão Sol e a irmã Lua, o amor incondicional a tudo e a
todas as pessoas (ainda no Teocentrismo medieval). Albert Schweitzer considerou
a vida e o ato de cuidar da vida como a referência maior, Arne Naess nos
brindou com a Ecologia Profunda, John Wheeler nos apresentou o Princípio
Antrópico, inúmeros povos falam de um Universo vivo, os místicos falam algo
assim, James Lovelock nos revela a Terra como Gaya e Rolando Toro nos propôs o
Princípio Biocêntrico. Todos olhando a vida como algo maior.
A história de
civilizações, cosmovisões de inúmeros povos antigos e atuais, novas formas de
Movimentos Sociais, Ecológicos e de Povos originários e nativos,
problematizações científicas, espiritualidade e vivências místicas, nossa
sensibilidade singular frente à vida e a própria Biodança, tudo isso evidencia
que um novo paradigma vem se gestando, ganhando espaço na sociedade. Podemos
considerar que, de algumas décadas para cá, está se adentrando em nossas vidas
e em toda a humanidade, um paradigma que progressivamente vem substituindo a
ideia da razão e do poder como centro da vida social e da existência humana,
por um sentimento de vida, evidenciando aí o Amor. Traz a Vida como a
referência maior.
Em
nossa compreensão, por toda essa leitura e contribuições histórica, mística,
social, cultural, científica, temos de considerar que estamos diante do
Paradigma Biocêntrico, o paradigma de um novo mundo humano, o qual nos leva a
sentir e perceber o viver como algo maior, o grande acontecimento da nossa
existência, sendo a Vida totalidade sensível, organizadora, criativa,
inteligente e sagrada.
Isso
nos leva a novos sentimentos e a uma nova compreensão do Universo e das nossas
vidas, numa perspectiva imanente-transcendente, pano de fundo de toda
materialidade. Significa que a Vida não vem da matéria, ela é a estrutura-guia
do Universo, do humano e da cultura. Nesta perspectiva advém a possibilidade de
outro modo de viver, de novos valores, de uma profunda mudança individual e
social que integra natureza e cultura, imanência e transcendência.
O
Paradigma Biocêntrico surge de outros paradigmas que marcaram a humanidade ao
longo de seu processo civilizatório. Do ponto de vista Ocidental, segundo
Almeida ( ????), tivemos nos primeiros milênios da humanidade a visão cosmocêntrica,
depois a teocêntrica, até aparecer no Século XVII a visão antropocêntrica, que
predomina ainda hoje. No Oriente a visão monista, diferentemente da
teocêntrica, se atinha à consciência e ao Todo, não como Deus, mas como, por
exemplo, o Tao e a relação com o humano.
No período
cosmocêntrico, que durou, hegemonicamente, por volta de 40.000 a 5.000 anos
antes de Cristo (do homo sapiens à cidade de Ur), encontramos o ser humano
primitivamente confuso, fusionado e depois governado por forças naturais
simbolizadas deuses, como o sol, a lua, os planetas, tudo no firmamento e em
toda a natureza circundante revelavam-se encantados, mágicos, sagrados e
detentores da vida humana.
No teocentrismo
já não são as forças da natureza que reinam e dominam o ser humano, mas sim um
Ser maior, espírito onipotente, onisciente e onipresente, criador do Universo e
de todas as criaturas. É o Deus de Abraão, Moisés e João Batista, que se fez
homem em Jesus. Período compreendido entre Ur e a Renascença (4000 AC a 1600
DC). Inclui o Velho Testamento e o Novo Testamento, o Judaísmo, o Cristianismo
e o Islamismo.
De 1600 DC aos
dias de hoje temos o antropocentrismo, o homem em sua razão é o centro do
Universo, substitui Deus, passando a ser a referência principal para o novo momento
civilizatório. Razão e poder; construção experimental do conhecimento,
considerando as coisas da religião (fé) separadas das coisas da ciência
(matéria); multiplicação de escolas e universidades; redução e controle da
natureza; avanço da nova ciência (moderna); organização racional do trabalho;
desvalorização da fé, do místico e dos sentimentos de amor e vínculo;
transformação do mundo em objetos e mercadorias e distanciamento do convívio
com o natural; criação do Estado Moderno; destruição da natureza e
enaltecimento do urbano, da inteligência, da tecnologia e do industrial;
aumento da expectativa de vida; explosão do individualismo e do consumismo;
tudo isso, constitui a sociedade moderna com sua ordem social baseada em um
Estado de Direito.
A partir da
década de 60 do Século XX, o Movimento Hippie, os movimentos ecológicos, os
novos movimentos sociais, vários cientistas, artistas e espiritualistas,
afirmaram o Paradigma que tem por base a Vida, denominado por Rolando Toro na
década de 70 de Princípio Biocêntrico.
E hoje, cada vez
mais, surgem outras vozes, como a de Leonardo Boff ao falar de uma sociedade
referenciada na vida; Boaventura de Sousa Santos tratando de uma sociedade
biocêntrica; as constituições da Bolívia e do Equador legalizando Pachamama e
os direitos da Natureza.
Há uma crescente
preocupação e efervescência com relação ao novo paradigma, que tem sua mais
importante sistematização no Princípio Biocêntrico formulado por Rolando Toro
em sua teoria sobre o dançar a vida - Biodança.
A vida como
referência maior nos leva à outra forma de humanização, à sensível e profunda
coexistência e à sacralidade do mundo. Amplia a consciência, revelando inúmeras
possibilidades do viver, possível de acontecer por meio de um cultivo
biocêntrico, gerador de uma cultura que emerge ano a ano no Planeta Terra,
nossa moradia ecológica – a Cultura Biocêntrica.
Para civilizações antigas e inúmeros povos
originários que resistem até hoje, para vários místicos e cientistas (inclusive
da Física e da Biologia) e, especialmente, para Rolando Toro, tudo no Universo
está vivo, coexiste e está relacionado com um princípio maior – a Vida. Isso
implica dizer que a matéria surge de um princípio organizador que cria e recria
o mundo, guia o Universo, mediante processos sutis e complexos de combinação,
recombinação, simetria, assimetria, caos, ordem, vazios, coerências,
incoerências, temporalidade, espacialidade, fora do tempo e fora do espaço,
conectividade visível e invisível, paradoxos, bifurcações, impermanências, presença,
harmonia, colapsos, rupturas, beleza, entropia, neguentropia e “ação
fantasmagórica à distância” (Einstein falando sobre a ação não-local).
Essa
é a dança da vida, uma empolgante sinfonia que a consciência ampliada é capaz
de captá-la brotando e se manifestando em pulsação, diversidade e
conectividade. O ser humano é capaz de sentir e perceber essa misteriosa,
poderosa, sutil, bela e solitária abstração sensível, esse princípio harmônico
de caos-ordem, vazio, transcendente, organizador, criativo e inteligente.
La fuerza que nos
conduce
es la misma que
enciende el sol,
que anima los mares
y hace florecer los
cerezos.
La fuerza que nos
mueve
es la misma que
agita las semillas
con su mensaje
inmemorial de vida.
La danza genera el
destino
bajo las mismas
leyes
que vinculan la
flor a la brisa.
Bajo el girasol de
armonía
todos somos uno.
(Rolando Toro, 1991)
Consideramos,
nessa nova e antiga percepção da vida, o Universo uma teia inacabada, explícita
e implícita de consciência, sensibilidade e informação, que se organiza e
evolui em função da vida. Ele se complexifica
através de sua própria diversidade e conectividade local e não-local, e evolui
por si mesmo mediante relações pouco conhecidas, principalmente entre
gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca, vazio
quântico e energias sutis. É a Dança de Deus.
Se Deus não joga
os dados ou se Deus joga os dados, isso não é o principal, pois as duas
questões são aspectos diferentes da mesma complexidade e sutileza. Concordamos
com Raúl Terrén e Rolando Toro quando dizem que "Deus joga os dados e
sempre ganha", quer dizer, desconhecemos as trajetórias da Grande Dança,
mas o resultado é neguentrópico, belo e misterioso.
A compreensão de
um Universo que se organiza para favorecer a vida, numa dança sutil de caos e
ordem, pode parecer sem sentido, ambiciosa, entretanto, estudos recentes (LOVELOCK,
1991), voltados para uma Ciência da Vida, apontam na direção de uma visão mais
profunda da vida, como algo mais complexo, sistêmico, auto-regulável e capaz de
manifestar-se como um Planeta-Vivo (Gaia).
A percepção da
Terra, ou do Universo, como ser vivo, é antiga, vem dos pré-sumerianos. Ciência
e Religião trataram o tema de maneira diferente depois de Galileu, porém, na
fase atual do conhecimento científico e do resgate da antiga religiosidade
(Tradição), nos encontramos frente à profundas convergências entre elas acerca
do macro e do microcosmo (CASSÉ & AUDOUZE, 1991). Hoje podemos dizer que a
noção de vida como algo de dimensão planetária ou cósmica está presente na
Ciência, nas experiências místicas e na vida comum de qualquer pessoa sensível.
Investigar e abrir-se a essa presença, a essa estrutura-guia, é o grande
desafio que nos deslocará para novo paradigma, o biocêntrico, o qual ultrapassa
o panorama holístico, a tendência de o todo se manifestar na diversidade e
esta, por conseguinte, revelar em sua potencialidade o todo. Este novo
paradigma vai além, se manifesta em um sentimento sagrado do Universo, de todas
as coisas existentes, sentimento este que tem como origem a vivência
biocêntrica.
O entender que
isto é assim ultrapassa os limites das formas atuais de pensar e se aprofunda
na vivência mesma do ser em sua viagem pelo mundo de si mesmo, no qual se
encontra a unicidade do espaço interior com o espaço exterior (CAMPBELL, 1991).
Tal clareza vem da vivência imanente-transcendente da identidade pessoal e de
tudo o mais.
3.3. PARTICIPAR E TECER A VIDA
Para onde nos
leva esse novo modo de sentir e perceber a vida, o Paradigma Biocêntrico? A uma
abertura existencial que nos impulsiona a participar e tecer a vida no
aqui-e-agora social com amor. Leva-nos a construir, no dia-a-dia, sentimentos e
valores pró-vida, uma cultura biocêntrica, mesmo sabendo que, para muita gente,
isso é apenas mais uma das utopias de quem não tem o que fazer, de sonhadores.
Mas, para muitos outros, que têm o que fazer, o sentido da vida está aí.
Aos poucos (é a
nossa esperança e a nossa luta), um novo (e antigo) sentido do humano e da vida
poderá prevalecer sobre a cultura da fragmentação e do individualismo, assim
fortalecendo uma cultura da vida que, por sua vez, aprofundará este sentido nos
corações e nas mentes das novas gerações.
A emergência do
amor e a manifestação de novos sentimentos e valores impulsionam o Século XXI
para a direção de uma sociedade biocêntrica, embora saibamos da existência de
graves obstáculos à sua semeadura, cultivo e colheita, tais como o
racionalismo, a ideologia masculina, a xenofobia, o preconceito social, o
fascismo, o neoliberalismo, o fanatismo e as relações de dominação e
exploração.
Estamos
navegando em complexos sistemas de comunicação, poderosas redes informáticas
que revelam, mediante a tecnologia da computação, o quão fazemos parte e nos
movemos em uma tecitura maior, em um fluxo, em uma rede, onde o particular
contém o universal e este o particular, e muito mais. Fala-se da aldeia global,
de globalização, como uma grande novidade inevitável. A aldeia global, a nossa
casa Terra, é óbvia, não do ponto de vista do neoliberalismo e do seu
"merchandising" (falso livre-mercado, falsa competição - basta ver o
sistema de vigilância estados-unidenses Echelon,
que se utiliza para isso dos satélites Intelsat), que nos impõem uma realidade
fabricada e controlada pela ideologia imperialista constantemente atualizada.
A nossa casa
Terra emerge de um sentimento sagrado, biocêntrico, sendo um novo parâmetro
para nos localizarmos e nos movermos no mundo, mover-se na direção de outros
povos e nações a partir do reconhecimento e do valor das diferentes culturas.
No caso, do Brasil, tomar como referência não o Norte (nortear) ou o Oriente
(orientar), mas sim o Sul (sulear); não a estrela Polar ou a "Estrela dos
Reis Magos", mas sim o Cruzeiro do Sul, conforme proposição de Campos (apud FREIRE, 1994, p.219). Polaris é importante para o Hemisfério
Norte, porém, para o Hemisfério Sul, o que precisa valer de fato é o Cruzeiro
do Sul. Assim haverá integração e não dominação, não um sobre o outro, pois no
espaço não há o em cima nem o embaixo, nem um lado nem outro lado, a não ser
que convencionemos a partir de um referencial, e este pode mudar para se tornar
múltiplo. Em vez de darmos as costas para o Cruzeiro do Sul e ficarmos de
frente para a Estrela Polar, como é comum desde a escola primária, a fim de nos
situarmos no mundo e reconhecermos o lugar onde estamos (no caso, América do
Sul, Brasil), em vez de negarmos ou mesmo substituirmos nossa história, nossa
cultura, nosso valor, por outros próprios do Hemisfério Norte, necessitamos
ficar de frente para o Sul, para o Cruzeiro, pois assim poderemos olhar o mundo
e a nossa casa a partir do que realmente somos, diferentes e semelhantes -
humanos.
Posicionados
desse modo, podemos dialogar, conviver, criar e transcender. Sul, Norte,
Oriente e Ocidente, todos em uma roda de diálogo e convivência, dançando a
diversidade e superando a padronização cultural e ideológica da globalização,
que tanta exclusão social gera, inclusive nos países do Norte.
Nosso mundo
continua sendo um lugar de contrastes perversos (desigualdades sociais e
dominação), apesar de contar com sofisticados sistemas de conhecimento, de
direito, de produção, de transportes e de comunicação. Mesmo assim, é um mundo
propício à humanização e à Natureza, à Vida, um terreno fértil para a
construção de uma grande roda de etnias em meio à Natureza - uma roda de amor,
de aceitação e de criação em meio às diferenças e semelhanças entre indivíduos
e povos.
Isso ainda é uma
utopia, mas a integração cultural (vivência transcultural do amor) é possível,
desde que participemos ativa e amorosamente da promoção da vida. Esse grande
sonho, já sonhado por muitos que já morreram e por muitos que estão lutando
hoje por ele, em todos os lugares do Planeta Terra, um dia poderá ser
realidade. Ver, por exemplo, a caminhada de Gandhi, Albert Schweitzer, Dom
Hélder Câmara, Martin Luther King, Paulo Freire, Rolando Toro, Edgar Morin,
Carl Rogers, O´Neil, Dragão do Mar, Rigoberta Menchú, Chico Mendes, Nuvem Vermelha,
Nélson Mandela, Isadora Duncan, Leila Diniz, Joana D´Arc, madre Teresa de
Calcutá, Indira Ghandi, Marie Curie, Chiquinha Gonzaga, Frida Cahlo, Cora
Coralina, Patrícia Galvão, Papisa Joana, Maria Tomásia, Bárbara de Alencar e
tantos outros. Ver, também, os movimentos sociais e ecológicos, o movimento dos
povos andinos e da floresta, do Conselho Mundial das 13 Avós, de muitas ONGs e
de tanta gente que desconhecemos e que faz um profundo e amoroso trabalho em
seu cotidiano.
Já começamos a
democratizar a democracia e a reverenciar o Numinoso e a Natureza. A voz dos
que não têm voz, já está sendo ouvida, longe e perto. É voz de coragem, voz de
solidariedade, voz de esperança, voz de amor.
Um sonho como
esse nasce do olhar e do gesto generoso de um guerreiro amante, de um rosto
voltado para as estrelas, de uma nova (e antiga) sensibilidade que permite
captar a beleza da vida se fazendo em cada rosto, em cada ser vivo, em cada
partícula do Universo.
É preciso não se
dispersar, não perder de vista o sonho. É preciso continuar tecendo e vivendo a
vida em suas manifestações mais profundas de amor, espiritualidade, equidade
social e ecologia. Não podemos evitar o rosto da Natureza e da humanidade
diante de nós e em nós, o rosto de cada passante, pois podemos correr o risco
de não mais reconhecê-lo como revelação da vida, do sagrado e da nossa condição
de humano.
A Cultura
Biocêntrica assinala um novo passo que já vem sendo dado por um crescente
número de pessoas em todos os países, que hoje tem a consciência ampliada do
verdadeiro sentido da vida, do humano, da sociedade, do Planeta Terra e do
Universo. Manifestações pela paz, pelo direito à vida, contra as guerras e a
fome, pelo fim da violência, em defesa da natureza, pelo amor, passam a ocupar
cada vez mais o cenário social e político de nossa época. Em meio a tantas
desesperanças o surgimento de novos sentimentos e valores de vida ganha força e
se espalha como questão atual para o futuro da humanidade e do Planeta Terra.
Estamos diante
de um novo aprendizado existencial, de uma nova (e antiga) compreensão do
humano, onde a consciência se aprofunda e se amplia mediante novas práticas de
encontro, educativas, sociais, terapêuticas e espirituais, voltadas para a
construção coletiva e individual de uma sociedade biocêntrica. Novas atitudes,
conhecimentos, outras formas de aprender e se desenvolver, sentimentos e
valores pró-vida semeados e cultivados na escola e universidades, no trabalho,
nas religiões, nas comunidades, nas famílias, nas ruas, nos movimentos sociais
e em instituições de toda ordem.
Dar
as mãos é um profundo e decisivo ato político, ato de amor, como dizia Rolando
Toro (1991).
Autor: Cezar Wagner
O Cezar Wagner dedica sua vida a esse PROJETO/AÇÃO, que é a BIODANÇA, uma maravilha, cujas iniciações e vivências são de difícil descrição, pois cada pessoa é única em sua maneira de sentir, de ser, embora tod@s estejamos conectados - queiramos ou não - no UNO.
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