Reverência ao mestre, companheiro e amigo, Rolando Toro, chileno, criador da Biodança.
BLOG CEZAR WAGNER é um instrumento em favor da construção da Cultura Biocêntrica. Contém minhas reflexões, fotos, poesias, videos, artigos, livros, textos avulsos, trabalhos realizados e a realizar, divulgação do que penso e faço em um campo onde estão presentes a Psicologia Comunitária, a Biodança, a Educação Biocêntrica, a Consciência e a Participação Social, Comunitária e Organizacional. Abraço solidário
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27 de julho de 2014
26 de julho de 2014
CARTA DE ROLANDO TORO AOS ALUNOS DE BIODANÇA
1981
Transcrevo abaixo um documento histórico, a mensagem
de Rolando Toro a todos os alunos de Biodança, escrita em um dos momentos
difíceis da árdua tarefa de construção e implantação da Biodança no Brasil, 1975 - 1982.
Nesse momento ditatorial,
os agentes da Inquisição foram o Conselho Federal de Psicologia e a Polícia
Federal do Brasil. O ato de deter Rolando Toro em Curitiba, baseados no
famigerado Estatuto do Estrangeiro elaborado pela Ditadura Militar, fica
gravado na história como uma peça do absurdo e do moralismo. Tentaram
expulsá-lo do Brasil, mas fracassaram, foram vencidos pela lucidez de outros e
pela luta dos que defendiam a Biodança.
Amigos, filhos queridos, doce gente brasileira,
A grandiosidade dos povos se manifesta precisamente
nos momentos difíceis e de crise.
Quando as forças da
estupidez e da degradação se conjuram para tratar de destruir tudo o que
floresce, o encanto de viver, o júbilo da amizade, o calor apaixonado do amor,
a inocência e a fé num mundo melhor; quando essas forças da bestialidade
institucionalizada arremetem através de decretos e mandados contra o povo de
Biodança e contra a minha pessoa, nesses momentos de inusitada violência, tenho
recebido o maior presente que um homem pode ganhar na vida: a intensa
solidariedade humana.
Esta união nos faz invencíveis.
De todos os rincões do Brasil, de Fortaleza,
bem-amada, generosa e sedenta; da potente São Paulo, eriçada de cimento,
distribuindo poesia e desesperação; de Brasília, crepúsculo vermelho e aba dos
amigos; do Rio de Janeiro, de mar azul e pele ardente; de Bauru, mágico e
íntimo; de Belo Horizonte, magnetismo geológico e realidade de amor; de
Florianópolis, intelectual e luminosa; de Porto Alegre, extensa lealdade em
verdes prados; de Vitória, de doçuras secretas e voluptuosa inteligência; desde
os quatro pontos cardeais do Brasil, como se o vento amazônico juntasse as
vontades em um só ponto e me trouxesse as mensagens, os chamamentos, as cartas,
as palavras de solidariedade, as mãos estendidas, os abraços.
Esta noite durmo tranquilo,
nos braços de milhares de amigos.
Irmãos queridos! Nunca
me senti tão forte como hoje. Meu coração é uma lança, meu cérebro está
desperto e sensibilizado.
Escrevo esta mensagem
depois de sórdidas e dramáticas horas nas quais, junto com minha companheira
Cecília, conheci o desprezo e a indecência tangíveis em nossa época.
Recebam vocês meu amor,
minha determinação e gratidão.
Seguirei a linha
traçada pela Biodança.e que um dia se descubra que o paraíso é o irmão.
Rolando Toro, 1981
22 de julho de 2014
Viver
Encontrar
cores na terra molhada,
Na
água de chuva
No
sol da manhã entre as nuvens
No
pássaro que pousa na árvore
Próximo
ao seu ninho
Renascer
Encontrar-me
brotando
No
amor que fracassa e que floresce
No
amigo que encontro
Na
cidade que construo contigo
Nos
filhos que me ensinam
O
que não consegui ensinar-lhes
Na
passagem dos anos
No
tempo e não-tempo do amar
Celebrar
A
vida em suave canto
Bela,
voraz, voluptuosa
Brotando
em seiva nos corpos desnudos
Desmanchar-me
em fornalha
Incendiando
o instante de te ver,
De
fundir os corpos e renascer
Abraçados,
abrazados
Dançar
Encontrar-te
no sol da manhã
Nessas
tardes de verão, em noite de luar
E nas
estrelas adormecer contigo
No
infinito mistério da união
Participar
Estar
ao teu lado
Construindo
cidadania
Defendendo
a vida de tanta opressão
Ouvir
atento dos teus lábios
Um
canto de justiça e liberdade
Sofrer
por ti e por quem não se conhece
Lutar
por ti e por quem não se conhece
Fluir
Em
tempos e espaços dobrados
De
magia e estórias sem fim
Sem
temer planícies e abismos
Navegar
e ser criança
Andar
e voar por montanhas contigo
E
tanto mais
Enfrentar
o sombrio lago, mar tenebroso
Das
fantasias, do terror e do poder
E
brincar com inocência e arte
Sonhar
Olhar
a noite escura
E de
pé
De
rosto para o céu profundo
Ser-Estrela,
ser imaginação, tornar-se luz
De
muito longe, de todos os lugares
Adormecer
na noite, silêncio de sábio
Quietude
de recém-nascido
Fortaleza,
19/10/1991
19 de julho de 2014
A POSSIBILIDADE DE
FAZER MEDIAÇÕES SÓCIOPSICOLÕGICAS E ÉTNICAS (DECODIFICAÇÕES, TRADUÇÕES,
CONVIVÊNCIAS) EM PSICOLOGIA COMUNITÁRIA NA PERSPECTIVA DA AMÉRICA PROFUNDA.
Cezar
Wagner de Lima Góis[1]
Luciane
Alves de Oliviera[2]
Sara
Cavalcante Góis[3]
Alexsandra
Silva[4]
RESUMO
Nesse
artigo problematizamos a aproximação da Psicologia Comunitária com a ideia de América
Profunda, considerando-a capaz de contribuir por meio de mediações e traduções na
construção de conhecimentos e na recriação da vida social, étnica e humana como
diversidade local. Buscamos clarificar a questão desde o olhar da libertação e
das epistemologias do sul, e apresentar experiências que afirmem esse modo de
fazer Psicologia Comunitária. Tratamos da colonialidade relacionando-a com o
que fazer em Psicologia Comunitária e enfatizamos a importância da mediação
sóciopsicológica/étnica, das traduções de olhares, e os aspectos que constituem
essa mediação: o dialógico, o vivencial e o participante. Para finalizar essas
reflexões, relatamos de modo breve algumas experiências de facilitação e de
pesquisa realizadas por nós no Ceará, especialmente na capital, Fortaleza, e no
município de Sobral.
Palavras-chaves: Psicologia Comunitária, América
Profunda, mediação, sujeito da comunidade.
1. INTRODUÇÃO
Pensar
a Psicologia Comunitária na realidade social de hoje é reconhecer a
pluralidade, considerar a diversidade epistemológica. Não há possibilidade de seguirmos
por caminhos de colonialidade (Quijano, 2010). Esta, proveniente do
colonialismo, se refere a um aspecto grave do padrão mundial do poder
capitalista imposto ao mundo, caracterizado por classificações raciais/étnicas
como base para esse padrão de poder operar no mundo por meio de dimensões
materiais, sociais e subjetivas, inclusive epistêmicas. Em Psicologia
Comunitária implica assumir outra atitude epistemológica, aberta às cosmovisões
locais e baseada nas epistemologias do Sul (Sousa Santos, 2010), e da
libertação (Dussel, 1977; Martin-Baró, 1998; Freire, 2011). Cada povo, cada comunidade
social, tem seu modo de vida e seu próprio saber, o qual pode traduzir outros e
ser traduzido por estes. Isso significa reconhecer e aceitar a pluralidade étnica,
social e epistêmica, e não mais permanecer no olhar da colonialidade, que a
tudo traduz e nos entrega sempre como o válido e o verdadeiro. Compreender
também que essa tradução no interior de cada povo e classe social, ou entre
povos e classes sociais, com possibilidade de recriação a partir daí, se
encontra numa condição mediadora complexa, numa abertura dialógica, afetiva,
ética e transdisciplinar.
Nesse
olhar podemos reconhecer o rosto antigo, escondido, humilhado, mas que resiste
e é criativo (Kusch, 1986; Dussel, 1977; Menezes, 2006; Martin-Baró, 1998; Freire,
1979). É o rosto dos povos originários, dos quilombolas, dos mestiços e
afro-descendentes pobres, rosto que resiste e perdura nos países atuais da
América.
Nessas
condições historicamente dadas, fazer mediações, traduções entre as
cosmovisões, os pensares, em espaços de convivencialidade (Boff, 1999) implica,
por um lado, reconhecer a grave desigualdade étnica e social, e por outro,
considerar a possibilidade de mediações, sem desconsiderar o protesto e o confronto
como meio para se chegar à negociação e à convivência democrática entre os
diversos da América.
Diante
dessas questões atuais, o desafio que surge para a Psicologia Comunitária na
América Profunda é o de facilitar processos de mediação psicossocial/étnica que
contemplem decodificações, traduções e convivencialidade no interior de uma
sociedade e/ou entre povos, trabalhar com a população pobre (mestiços e
afro-descendentes em geral), também por fora das políticas públicas, e aproximar-se
mais dos povos originários e quilombolas.
2. AMÉRICA PROFUNDA
Contrapondo-se
à América dos colonizadores, encontramos as ideias de Ameríndia (Dussel, 2010)
e de América Profunda (Kusch, 1986). Ambas estão relacionadas com os povos
originários. Entretanto, não podemos
negar o processo civilizatório pós Colombo, porém é preciso considerar nessa
questão a palavra profunda como a
característica central do que hoje é a América, diferentemente da ideia de
América Profunda apresentada por Rodolfo Kusch. Dar-lhe outro significado, que
se traduz como aceitar a pluralidade, o mais antigo (povos originários), o conquistador
(povos europeus), o traficado (povos africanos), o quilombola (remanescentes
dos povos africanos que vivem em Quilombos), o afro-descendente e o mestiço das
sociedades atuais, como uma realidade histórica que está aí e que pode
significar o solo para uma consciência americana plural e libertária, mais de democracia
do que de dominação, exploração e pobreza (Cidade, Moura Jr. & Ximenes,
2010). Uma utopia, um horizonte ético-político referente para os passos atuais,
para a recriação epistemológica e a possibilidade da convivência democrática.
3. PSICOLOGIA
COMUNITÁRIA E AMÉRICA PROFUNDA
O
que buscamos em meio a essas questões de fundo é fazer uma Psicologia
Comunitária (Góis, 2005; Ximenes & Góis, 2010) cada vez mais ciência do
sujeito comunitário e da mediação sócio-psicológica e étnica, um meio para se
construir e se reconstruir conhecimentos em meio à pluralidade de saberes e de
práticas, bem como favorecer a expressão e fortalecimento de identidades
pessoais, sociais e culturais.
Entendemos
que a Psicologia Comunitária é capaz de
fazer mediações (decodificações, traduções e convivências) nos espaços das
comunidades, tanto no sentido da construção de conhecimentos (acadêmicos,
profissionais e populares), como no sentido da facilitação de processos
sóciopsicológicos e étnicos que contribuam para a recriação do indivíduo em
sujeito de sua vida e da comunidade. Compreender a Psicologia
Comunitária na América atual é revirá-la para aprumá-la no rumo das
epistemologias da libertação, das epistemologias do sul, da potencialidade e
potência inerentes à própria localidade social e étnica, comunitária.
Trazer
essa questão para o interior da Psicologia Comunitária é apoiar-nos na
possibilidade de reconhecer, acercar-se e implicar-se no universo local para
decodificar, mediar presenças e convivências, facilitar traduções e
compreensões entre práticas e saberes locais de uma mesma cultura ou de
distintas culturas e subculturas presentes nas comunidades e em suas relações
com outros lugares, até mesmo de outras etnias, com os saberes das diversas
disciplinas acadêmicas e áreas profissionais que tentam uma aproximação para
agir nas realidades comunitárias.
A
Psicologia Comunitária pode lidar com mediações de saberes, de sentidos, de sentimentos,
de ações e de recriações solidárias do humano, do cultural e do social, de
facilitação de processos nos quais os indivíduos criam a si como sujeitos
individuais portadores da condição de sujeito coletivo (Touraine, 2007).
Posicionar-se
na mediação é se implicar com indivíduos e grupos para com eles construir
conhecimentos e ações por meio do diálogo, da vivência e da ação-participante.
O diálogo como meio de aproximar e aprofundar significados e sentidos (Freire,
1994); a vivência como caminho de expressão de sentimentos (Toro, 1991) e de
construção de sentidos, de estar com o outro no mundo; e a ação-participante (Fals
Borda, 1978) como presença do sujeito individual e equidade de saberes. Diálogo,
vivência e ação-participante são constituintes de um só processo de mediação
onde ciência e política não se separam..
4. RELATOS DE EXPERIÊNCIAS
À guisa de pequenos relatos, apresentamos
a seguir algumas experiências de mediação referenciadas nas epistemologias do
sul e da libertação. Mencionaremos: Método clínico-comunitário; Lagamar - a
luta pelo direito à cidade; Dialogando sobre a longevidade em Sobral; Um
panorama das crianças e jovens da periferia: entre experiências, reflexões e
tessituras; e, por fim, Jovem, violência e participação comunitária.
. Método
Clínico-Comunitário
O método é dialógico-vivencial-ativo e foi
inicialmente aplicado em um bairro da periferia de Fortaleza. Contém quatro
estratégias metodológicas básicas entrelaçadas.
. Inserção
e ação na comunidade
O profissional se envolve nas
principais questões ou problemas vividos pela população, os quais são claros e
frequentemente debatidos nos encontros comunitários. Ele deixa de ser um
técnico fechado em um único local de atendimento para ser um profissional ativo
que participa da vida da comunidade.
. Prática Clínica - Terapia pelo Encontro
É uma
terapia popular em grupo Góis (2012), uma prática clínica de prevenção em saúde
mental. Tem como objetivo facilitar processos existenciais que
permitam ao morador superar ou evitar que o sofrimento lhe impeça de melhorar
sua vida e a vida da comunidade. É formada por quatro linhas de facilitação que
se mesclam continuamente e se separam em certas condições do processo do grupo.
Isso quer dizer que no processo de uma sessão pode-se passar por todas, por
três, por duas ou por uma só das linhas de facilitação. A primeira e a segunda
linhas estão relacionadas com a fala profunda, quer dizer, a fala que vem do
próprio fluxo de vida de quem fala, é expressiva e envolve ou atrai a quem está
escutando; é reveladora do que a própria pessoa sente e pensa a respeito de si
e do mundo. Dar-se quando o morador fala de seu sofrimento e de sentimentos
positivos também presentes em meio à sua dor, isto é, acontece quando ele fala
de si e também quando dialoga com outros sobre como vê o mundo e o que poderia
fazer para melhorar sua comunidade. Quando a fala é narrativa de vida, a pessoa
fala dela mesma, chamamos de fala existencial; quando se fala do mundo é problematizadora.
A fala existencial e a fala problematizadora constituem a fala profunda. A
terceira
linha de facilitação é a dramatização (Moreno, 1990; Boal, 2002). O ato
dramático é um meio de retomar vivências gravadas na história individual e
coletiva, trazê-las ao presente como vivência do presente e não do passado,
facilitando ao participante a condição de protagonista e espectador, com
outros, de si mesmo. Cria o distanciamento necessário à manifestação da
consciência do vivido, em que o material psíquico acumulado por repressões é
transformado em instante vivido e elaborado como realidade presente.
A
quarta e última linha de facilitação é a vivência, a qual nos traz de forma
cristalina a qualidade do vivido. Surge da intensificação sensível e amorosa do
corpo através da dança, de uma relação íntima corpo-mundo, uma corporeidade
vivida (Merleau-Ponty, 1993), pulsando a partir de um mundo corporal,
expressivo e relacional. O instante é vivido com grande intensidade pela pessoa
e envolve, além de processos subjetivos, a sinestesia, a motricidade, as
funções viscerais, as emoções e os sentimentos (Toro, 1991).
.
Integração da prática clínica com atividades comunitárias, políticas
públicas e terceiro setor na comunidade
A prática clínica está imbricada na
dinâmica comunitária, fazendo parte de um todo que denominamos de vida
comunitária. O participante da prática clínica tem a oportunidade de também
participar em outras atividades na comunidade, já que a clínica não acontece de
forma separada da luta dos moradores, da vida em grupos solidários nem do apoio
social informal (Oliveira, 2003) tão presente nas comunidades. Tampouco
separada das políticas públicas presentes no lugar.
. Lagamar - A luta dos moradores pelo direito à cidade
Morar
nua cidade em franco crescimento e de especulação imobiliária é algo desafiante
para a população pobre, uma situação que na maioria das vezes os moradores são transferidos
para lugares mais distantes, de acesso difícil. São mal indenizados e, por
isso, é comum não terem condições para comprar uma casa nesses lugares
indicados para a remoção deles. No Lagamar, área de um bairro de Fortaleza com
uma população de 12.000 moradores, em geral mestiços e oriundos em sua maioria
do sertão do Ceará, situada em um local de grande valorização fundiária, isso
iria acontecer.
Do
Plano-Diretor da cidade, que foi enviado para a Câmara de Vereadores de
Fortaleza, foi retirada a definição do Lagamar como Zona Especial de Interesse
Social – ZEIS, medida que levaria os moradores a uma completa desproteção
social, urbana e fundiária. Sem ser ZEIS, os moradores do Lagamar correriam o
grave risco de remoção. A maioria das lideranças tradicionais da área estava
desiludida, em razão do boicote que Prefeitura e Vereadores realizavam,
deixando as lideranças desinformadas e impotentes.
Partindo dessa situação, algumas
lideranças da Fundação Marco de Bruin, criada pelo antigo movimento popular do
Lagamar, procuraram a nós com o convite para trabalharmos juntos no sentido de reverter
a situação e garantir aos moradores o direito ao lugar.
O trabalho com os moradores se
pautou por mediações dialógicas, vivenciais e participantes, inicialmente entre
eles, já que a área estava social e politicamente desorganizada para qualquer
luta comunitária. Inúmeras reuniões, círculos de cultura, vivências, encontros em
quarteirões e expressão da arte popular foram realizados ao longo de 04 meses,
diariamente. Daí se descobriu o caminho de andar com determinação, uma marcha
popular para chegar a Câmara dos Vereadores e ocupá-la sem violência até que a
questão fosse resolvida. Foi um passo importante e decisivo, realizado por
crianças, jovens, adultos e idosos. Outros passos foram necessários, novos
encontros, reuniões, círculos de cultura e vivências, e mais duas marchas
realizadas em direção a Prefeitura da cidade de Fortaleza.
Um projeto de lei foi criado em
conjunto Moradores-Prefeitura, todo negociado em comissões populares e técnicas,
ponto a ponto, e enviado para a Câmara dos Vereadores. Diante de uma comitiva
de moradores, o projeto foi aprovado na Câmara, definindo assim o Lagamar como
zona especial de interesse social, prioridade para investimentos públicos na
cidade, regularização fundiária e proteção contra a especulação imobiliária.
O processo de mediação
moradores-moradores na comunidade foi rico em criatividade, sentimentos, ações,
enfrentamentos entre eles, negociação e cooperação, trazendo à consciência de inúmeros
moradores a dignidade e a capacidade de luta, antes bastante enfraquecida.
Dialogando sobre a
longevidade em Sobral
A
expectativa de vida aumentada em diversos povos advém de diferentes fenômenos,
que mesmo permeados de diversas contradições, sem dúvida é um ganho
civilizatório impar na espécie humana (Oliveira, 2003). Mesmo considerando as
diferentes formas de envelhecer numa realidade de desigualdade como a nossa, onde
tal processo vivido por pessoas de condições de vida mais abastadas é diametralmente
distinto do vivido por pessoas de vida sofrida, empobrecida e reduzida de
possibilidade. Urge pensar o envelhecimento em sua condição coletiva, inserido
num contexto social, cultural, econômico e étnico. Tais concepções sobre a
longevidade estão presentes no Laboratório de Estudos sobre a Longevidade –
LAELON, curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará.
Uma
experiência nossa a partir dessas preocupações foi a do I Fórum “Dialogando
sobre a Longevidade”, ação do projeto de extensão “Vida longa e feliz para
todos” em Sobral, município de 197.613 hab, sendo 13.944 idosos (IBGE, 2010). Na
maioria dos municípios brasileiros, as discussões e ações nas temáticas da
longevidade humana eram reduzidas e fragmentadas, isoladas de uma percepção
mais ampla da vida municipalidade. O interesse do fórum era suscitar a temática
da longevidade a partir da seguinte constatação: Estamos vivendo mais,
envelhecendo, e o que estamos fazendo ou planejando para que nossa cidade seja
favorável para que a vida seja longa e feliz para todos? Necessitávamos iniciar
uma problematização sobre o direito de continuar vivendo com qualidade mesmo
vivendo muito? É possível vencer o preconceito e o desconhecimento sobre o
processo de envelhecer, enfrentar os desafios nos diversos âmbitos e setores da
sociedade, tais como saúde, educação, assistência, cultura, lazer, transporte,
urbanização, valores, convívio intergeracional e ética?
O
evento foi realizado no campus universitário, aberto a comunidade sobralense.
Para que o fórum fosse um espaço de trocas de saberes e práticas, onde os
diversos tivessem direito à voz, trazendo reflexões novas sobre esse novo tempo
de viver muito, buscou-se garantir e valorizar a participação de todos. Havia a
preocupação para que estivessem presentes pessoas de diversas origens sociais,
culturais, econômicas, intelectuais, étnicas, etárias, moradores, profissionais
e políticos. Convidamos estudantes universitários, professores, profissionais
liberais, profissionais das políticas públicas de assistência, educação, saúde,
lazer, desporto, urbanização, trabalho e renda, previdência, comunidades da agricultura
familiar e permacultores, quilombolas, povo originário Tremembé, organizações
não-governamentais, lideres espontâneos de grupos de idosos, de moradores,
representantes religiosos, pessoas referencias de saúde na comunidade, que
geralmente são idosas, tais como: raizeiras, benzedeiras, parteiras; também
vereadores, representantes do executivo municipal, dos conselhos de saúde, do
idoso, da educação e tutelar, gerontólogos e geriatras. Participaram em torno
de aproximadamente 150 pessoas em atividades que duraram um dia inteiro.
A
metodologia dialógica-vivencial (Góis, 2001), foi utilizada por meio de círculos
de cultura (Freire, 2011), vivências biocêntricas (Toro, 1991) e
arte-identidade (Góis, 2008). Iniciamos os trabalhos com vivências de integração,
onde as pessoas puderam se apresentar e se encontrar com muitas outras. A
seguir, os membros do Laelon apresentaram o laboratório e a proposta do
encontro, fechando esse momento com um vídeo organizado pelo grupo. Partimos
para os trabalhos em círculos de cultura, com o tema gerador do encontro:
“Estamos vivendo mais, envelhecendo, e agora? O que pensamos e devemos fazer
para que a vida seja longa e feliz para todos? Depois, foram compartilhados
trabalhos científicos relacionados com o tema da longevidade, experiências
populares como a do grupo de bordadeiras, experiências de plantios orgânicos
conduzidos pelos idosos da comunidade agrícola presente, experiências de
cuidados com a saúde apresentados pelos pajés de povos originários,
apresentação de trabalhos realizados pela secretaria de assistência e
profissionais da estratégia de saúde da família, e experiência de apoio
emocional e espiritual conduzida por líder religioso.
À tarde, tivemos apresentações de arte e
cultura de pessoas ou grupos que quisessem partilhar sua expressão sensível.
Houve apresentação de escultura, flores e frutos da terra colhidos pelos
agricultores, artesanatos, poesias, pinturas, esculturas – expressão da identidade
cultural. Em seguida voltamos aos círculos de cultura, com o tema gerador: O
que podemos fazer individualmente e em comunidade, grupos, espaços políticos e
de trabalho para construirmos o que sonhamos de vida longa e feliz para todos. Daí
seguiu-se para a síntese dos círculos de cultura, as quais foram apresentadas de
diferentes formas criativas.
Gerou-se
um documento do fórum, onde entre outras coisas se propôs o aumento da
participação dos diferentes grupos sociais, culturais e étnicos presentes nos
conselhos do idoso; compromisso de todos em inserir a temática da longevidade
em seus diversos lugares de atuação e comunidades com diferentes grupos etários;
e estimular encontros como esses. O encontro foi finalizado com apresentações
culturais diversas, como cantos, músicas e danças.
A
criação desses espaços propicia a mediação e a tradução entre saberes e
práticas diversas, favorecendo assim uma maior aproximação social e étnica,
consciência plural, abertura à convivência e o aumento das vontades de
intercâmbio entre os diversos.
Pensar
sobre a infância e a juventude na América Profunda é reconhecer a diversidade
étnica, social, cultural, territorial, de gênero, etc., que vai desde as raças,
culturas, origens, até os gostos, escolhas, problemas, potenciais, sonhos, que
trazem como cenário macrossocial, a condição em que se encontra grande maioria
dessas crianças e jovens. É preciso questionar essa realidade, uma vez que os
jovens constituem 40% da população da América espanhola e portuguesa (Kliksberg,
2006). Isso se configura como um desafio para nossa atuação, em que precisamos
estar atentos a uma formação cultural com foco na promoção da cidadania e
analisar criticamente como o conhecimento cientifico/profissional está sendo
utilizado. Analisar esse cenário significa direcionar nossas atuações e
conhecimentos no
sentido de uma
práxis transformadora (Nepomuceno;
Ximenes, et. al., 2008), assim como compreender os impactos
da pobreza sobre a juventude pobre da América (Feitosa & Dimenstein, 2004).
Diante
dessa realidade marcada por uma estrutura autoritária e excludente (Pinheiro,
2004), questionamos se as políticas públicas e os profissionais estão atuando
de modo ajustado ou não a essa lógica de dominação. Uma questão importante é
mediar processos que levem educadores sociais a compreenderem suas formas de
atuação em grupos de crianças e de jovens e a
importância de se abrir mão de intervenções autoritárias (Góis, 2008).
Na cidade de Sobral, interior do Ceará, trabalhamos com um grupo
de educadores sociais, buscando com eles problematizar a necessidade de se
atuar mediante grupos e os modos de facilitar esses grupos, formados por crianças
e jovens da periferia. Dividimos os educadores em 6 subgrupos,
com uma média de 7 pessoas cada. Usamos a técnica da
colagem como mediadora de significados e sentidos sobre a facilitação em grupo
e o modo de facilitar. O envolvimento dos participantes e o desejo deles
de falar sobre a questão surgiram progressivamente e logo o diálogo o
aparecimento de percepções democráticas sobre a importância do fazer
democrático e com dinamicidade a facilitação do grupo. Também se viu a possibilidade
de aprender diante do inesperado trazido pelos jovens e crianças.
À
medida que o diálogo se desenrolava era feita uma ligação com as seguintes
características de um facilitador de grupo, conforme apontado por Góis (2008):
“Inserção comunitária/grupal; potência pessoal; capacidade de vínculo; conhecimento
científico e técnico; manejo democrático do grupo; capacidade de apoiar de dar
limites; fluidez verbal; didática”. Outros olhares foram surgindo no diálogo
entre os educadores, como o de não só ver uma juventude marginalizada e
oprimida, mas também ver várias juventudes e todas elas tendo potencialidades e
capacidades capazes de se desenvolverem em um espaço democrático de facilitação
dos grupos de crianças e de jovens. Ficou patente entre os educadores o
diferencial que construíram para se trabalhar com grupos de adolescentes, perceberam
que as práticas anteriores, distanciadas, individualizadas, autoritárias não
cabiam na situação atual de trabalho com crianças e jovens da periferia, por
serem práticas de colonialidade.
Violência, Juventude e Participação
Comunitária
A violência tem um caráter histórico-cultural,
é impossível entendê-la fora do contexto social. (Santos, Alessio, & Amp; Silva,
2009). Nesta perspectiva, a violência urbana pode ser vista como representação
social, expressão simbólica que constrói subjetivamente determinados sistemas
de certos espaços e pessoas, comportamentos e fatores de organização das
relações sociais. Quando um é classificado como violento, é também pela
dimensão simbólica. Por isso se estabelece numa sociedade uma visão estigmatizada
e territorial de bairros classificados como pobres, violentos, por seus
próprios moradores (Barreira, Almeida, Brasil, & Amp; Freitas, 2010). Existe
violência quando, numa situação de interação um ou vários atores agem direto ou
indireto, forte ou sutil, causando danos a uma ou mais pessoas em um grau
variável, na sua integridade física, sua integridade moral, bens materiais ou em
suas participações simbólicas e culturais. Além disso, significa que a
violência envolve o uso ilegítimo da força, a coerção e opressão explícita ou
velada (Michaud, 1989). A violência também afeta desigualmente a população,
dependendo da classe social, gênero, idade, raça e etnia (Ramos e Carvalho,
2007). Os jovens são os mais afetados pelos diferentes efeitos e manifestações
da distribuição desigual de renda (Waiselfisz, 2013).
Para aprofundar essa questão, realizamos
uma pesquisa (Cavalcante Góis, 2011) em dois bairros pobres de Fortaleza com o
objetivo de verificar a relação entre violência, juventude e participação
comunitária. Os participantes que compuseram a amostra foram escolhidos
aleatoriamente entre os jovens residentes dos bairros; 110 pessoas com idades
entre 15 a 23 anos de idade, dos quais 53,6% homens 46,4% mulheres, 20% das
pessoas não estudavam e 59,1% da amostra estava participando de alguma
atividade na Comunidade. As variáveis estudadas foram: a violência em suas
dimensões de vitimização, exercício e percepção da mesma e a participação
comunitária. Para isso, desenvolveu-se um instrumento com ações do cotidiano
onde os entrevistados responderam se algum ato violento tinha se passado com
eles, se tinham praticado ou em que grau avaliavam tal ato como violento.
Também havia um instrumento que media a participação comunitária dos
entrevistados no ano anterior ao da pesquisa em relação à frequência, ao papel
e a forma de participação, destinada apenas para aqueles que responderam a uma
pergunta inicial, dizendo se tinha participado em qualquer atividade na
comunidade no período avaliado.
Os
resultados indicaram que os mais envolvidos em atividades comunitárias são
aqueles que mais valorizam as ações violentas como violentas, ou que eles estão
mais conscientes da violência. A frequência com que este jovem participa de
atividades na comunidade é associada negativamente com violência, salientando
que aqueles que participam na comunidade mais vezes por semana são aqueles que
praticam menos a violência. Também, o presente estudo revela que a vitimização
e uma menor participação na frequência de atividades comunitárias prevê 27,4%
do exercício da violência na juventude investigada. Da mesma forma, Parnes
(2008) diz que a exposição à violência pode limitar a capacidade dos jovens
para lidar adequadamente com suas emoções e comportamentos.
Na
amostra estudada, em geral, a dimensão participação comunitária, principalmente
a frequência nas atividades que são oferecidas à comunidade, está diretamente
relacionada com uma menor prática da violência e com uma melhor percepção ou
valoração desta, e indiretamente com uma menor vitimização. Isso poderia estar
indicando que o jovem envolvido em atividades comunitárias tem uma percepção
melhor sobre o que é violência e vitimização, e a exerce menos. Ou, o que é o
mesmo, jovens envolvidos em atividades comunitárias mostram uma maior
capacidade para lidar com a violência. Para Elias (2011) a convivência é
essencial para a redução da violência e a participação é um elemento central
nas teorias da democracia, onde o que se opõe à cidadania é a violência.
Poderíamos dizer, talvez, que a participação comunitária, principalmente pela
forma como é realizada nos bairros, permite que os jovens desenvolvam
comportamentos de vida, cidadania e comunidade, consequentemente, reduzindo
seus comportamentos destrutivos para si, para com o outro e para sua
comunidade.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Estamos em um
momento de radicalidade e de repensar caminhos para o que fazer em Psicologia
Comunitária. Tentar, por meio de problematizações e atuações, evidenciar a
possibilidade de contribuir com a pesquisa e com a facilitação de processos
comunitários mais livres da colonialidade. Implicar, por exigência de outro
horizonte ético-político, o acadêmico e o profissional da Psicologia
Comunitária numa realidade humana, social e étnica a partir das epistemologias
do sul e da libertação. Contribuir para esse novo momento da Psicologia
Comunitária, em seus desafios, possibilidades e limitações, sem deixar de
considerar que ciência e ideologia andam juntas.
Os relatos das
experiências aqui apresentadas procuram trazer a questão da mediação em uma
realidade plural, em seus aspectos de diálogo, vivência e ação-participante,
como condição integrada e facilitadora da práxis de libertação. Sabemos que
outros trabalhos estão sendo realizados tomando como referencial a América
Profunda, e com o nosso queremos contribuir para que esse espaço das
epistemologias do sul e da libertação possa influir mais sobre o pensamento
acadêmico, sobre a Psicologia e, especificamente, sobre a Psicologia
Comunitária e a vida nas comunidades sociais e étnicas dessas terras de
América.
6.
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45-64) Campinas: Alínea Editora.
[1]
Doutor em Psicologia, Universidade de Barcelona. Professor de Psicologia, Universidade
Federal do Ceará (UFC) e membro da Universidade Biocêntrica.
[2]
Doutora em Psicogerontologia Universidade de Barcelona. Professora de Psicologia
do Desenvolvimento do Curso de enfermagem da UFC.
[3]
Psicóloga e mestre em Psicologia Social, Universidade de Granada e membro da
Universidade Biocêntrica.
[4]
Psicóloga, mestranda em Psicologia-UFC e integrante do Núcleo de Psicologia
Comunitária (Nucom), UFC.
18 de julho de 2014
3. CULTURA BIOCÊNTRICA
A caminhada
civilizatória nos trouxe até aqui, um momento de profundos sentimentos e reflexões coletivas sobre a vida, a natureza, o social, a cultura, o espírito,
o conhecimento, a tecnologia e, mesmo, sobre nossa existência singular e
cotidiana.
A sociedade
moderna em sua base antropocêntrica quase nos dá a certeza de uma superioridade
que se manifesta em quase todos os aspectos da vida social, laboral, científica
e tecnológica. Os resultados dessa forma de agir demonstram o aparente sucesso
da razão e da modernidade em detrimento da vivência do amor, da oferenda e do
agradecimento entre os seres humanos e destes para com a Natureza.
Que podemos
fazer, então, frente a essa suposta superioridade? Que podemos dizer sobre as
doenças de civilização no mundo atual? Da destruição ambiental? Do
individualismo e consumismo? Das guerras? Da pobreza? Da exploração desenfreada
da Natureza e dos próprios seres humanos? Da depressão? Da violência? Do
Desamor?
3.1. CAMINHAR ANTROPOCÊNTRICO
Avançamos,
iluminamos, cada vez mais, o nosso caminhar, fazendo estradas e indo a lugares
insuspeitados, por dentro e por fora de nós mesmos. Pensamos (erroneamente) que
nada nos detém, nem a Natureza com sua energia vital que, em muitos instantes,
se manifesta de forma poderosa e dramática no cenário civilizatório urbano e
rural, como se viu recentemente nas imagens televisivas do Tsunami no Oceano
Índico, dos furacões passando pela Flórida e Nova Órleans, do terremoto no
Paquistão e da seca na Amazônia.
Somos capazes de
construir e reconstruir, produzir alimentos, viajar, curar doenças, construir
abrigos, proteger-se, aumentar a população, educar nossos filhos, fazer
satélites, aviões, bombas, vacinas, músicas, poemas, esculturas e tantas obras
de arte. Somos capazes de amar, de se enternecer com o voo do pássaro e com o
sorriso da criança. Podemos até pensar que a Natureza está somente fora de nós,
que somos os senhores de nós mesmos e de tudo que há no mundo, vindo a este
para reinar sobre todas as criaturas e coisas existentes. Somos capazes de
criar e de controlar, somos senhores do Tempo e do Planeta Terra, ou mais.
Nisso vemos nossa arrogância e alienação com relação ao Universo e à nossa
própria constituição vital.
Do pequeno osso
usado como instrumento e dos primeiros sons articulados aos satélites
espaciais, computadores e internet, percorremos um longo caminho de 7 milhões
de anos, em contínuas bifurcações ou ramificações, onde um só caminhar
prevaleceu e se mantém até hoje – do homo sapiens ao homem moderno (denominação
masculina, muito comum no antropocentrismo).
Do rosto voltado
para o chão, depois para as distâncias, estamos hoje com o rosto voltado para
as estrelas e para a nossa própria sutileza e refinamentos interiores. Para
onde estamos indo, se é que estamos indo para algum lugar? O que nos atrai? O
que nos impulsiona pela roda do tempo nesses espaços sem fim, dobrados e
desdobrados de coisas e de vazios chamados Universos?
Diante de tal
refinamento interior, o ser humano pode ser levado a se perceber privilegiado,
filho de um Pai Criador nascido para reinar no mundo, ou mesmo sendo o próprio
Pai. Apaixonado por si mesmo, vai deixando de lado o vínculo natural que a tudo
une em uma profunda e sensível Dança da Natureza. Passa a representar a si
mesmo como o único Filho de Deus e se posta em um trono devastador das belezas
naturais (riquezas), inclusive da vida que há em si mesmo (estilo de adoecer).
O homo sapiens
sapiens demens sobreviveu, faz história, faz cultura e se afasta cada vez mais
de sua antiga caverna, dos animais, dos elementos naturais, do seu corpo, de
sua espontaneidade, do prazer que incendeia a mente e da convivência com o
selvagem interior e abismal. Olha ele, muitas vezes, com nostalgia, para o
eterno e prometido paraíso, mas sabe, pela sensibilidade e consciência, que a
flecha do tempo, voraz, continua seu trajeto irreversível. Afastar-se da
cultura não é possível sob pena de desaparecer; tampouco seguir pela mesma
trajetória garantiria a potencialização da nossa energia vital que, de tão
bloqueada e deformada, gera doenças de civilização. O que fazer, se o caminhar
antropocêntrico assinala seu esgotamento e limitação frente às novas exigências
humanas, sociais, psicológicas, espirituais e naturais?A Cultura
Antropocêntrica legou-nos extraordinários avanços no campo da ciência, da
técnica e da organização social, construiu as bases da sociedade moderna. O
Iluminismo francês, o Idealismo alemão, a grandeza da razão humana e seus
métodos de pensar, controlar e atuar, foram em geral aplaudidos e reverenciados
como o caminho pelo qual se faria a redenção humana, o novo homem e o estágio
positivo da sociedade.
Séculos se
passaram desde Galileu e Descartes, levando a mente racional por caminhos de
construção de modelos lógicos cada vez mais avançados, no afã de conhecer e
controlar, porém baseados em fragmentações e reducionismos da realidade.
Caminhos de linearidades, descontinuidades e hierarquizações que marcaram o
avanço da Ciência, da Técnica, da organização do Estado e da vida social.
Adentramos no
Século XXI com toda a robustez do conhecimento, da tecnologia e de uma
sociedade legislada, marcando essa entrada com novos conhecimentos e novas
leis. Essa entrada no novo século trouxe também à tona algumas outras perguntas
essenciais à vida humana, em geral, relacionadas a uma questão vital: a relação
que criamos com nós mesmos, com os outros e com a natureza, bem como suas
consequências para cada um de nós, para a sociedade e para a própria Natureza.
Seguir sendo o
único filho de Deus, ou mesmo sendo o próprio Deus, talvez não seja uma saída,
pois essa postura, ao longo do tempo, se fragilizou ou, até mesmo, se esgotou.
É evidente que ela não mais atende ao anseio de uma sociedade mais justa,
esclarecida, saudável, amorosa e ecológica. Não queremos com isso negar a
Ciência nem a Religião, somente dizer da urgência de um reposicionamento do ser
humano com relação à Natureza e à Cultura, e mesmo com relação à presença de
Deus e dos Deuses em nossas vidas e em todas as coisas que existem.
A cultura muda
continuamente, mas em que direção está-se dando essa mudança? Que paradigmas
orientam essa mudança? Urge novo olhar, um novo (e antigo) sentir, outros
parâmetros, não apenas da razão, mas sim profundamente marcados por uma nova
sensibilidade frente à vida. Novas maneiras de sentir e perceber a vida.
3.2.
PARADIGMA BIOCENTRICO
A realidade se
impõe frente ao nosso conhecimento, exigindo não só novas sínteses teóricas a
partir de um imenso conjunto de análises (LEONTIEV, 1982) já realizado neste
século, mas parâmetros diferentes, paradigmas no entender de Kuhn (apud GLEICK, 1990:33), uma nova
percepção no entender de Capra (1982). Nossa crise não é de conhecimento, mas
sim de percepção. Essa é a oportunidade que se abre para uma nova maneira de
ver e participar da vida.
Para perceber
diferente é preciso estar em lugar diferente (por dentro e por fora), e para
perceber amplo, como requer uma visão de conjunto, é preciso olhar do alto da
montanha o vale, ter uma visão de altura que nos permita mover a cabeça em
todas as direções. Olhar do alto para os pontos cardeais e mergulhar com uma
visão de águia nos mínimos detalhes do vale, sem deixar de ver o vale e sem
deixar de voar, fluir. Para olhar a realidade é preciso estar em movimento, por
dentro e por fora de si mesmo, sem se congelar em um valor, conceito ou método,
mas sim se manter aquecido com a contínua recriação deles.
O conhecimento e
a própria sociedade, se apoiam em paradigmas (incluindo seus valores) que não
só procuram explicar a realidade, como também buscam organizar (cognitiva e
afetivamente) nossa percepção em relação a ela. Olhando na aparência, paradigma
e realidade se confundem, se fundem, impedindo o observador de ver a realidade
e mesmo de vivê-la de outros modos não configurados, não hegemônicos. O desafio
para qualquer um de nós é o de distinguir a realidade do conceito, ultrapassar
a inércia conceptual e existencial para vislumbrar outros arranjos fenomênicos
e vivenciais (epistemologia e ontologia), assim fazendo avançar a Ciência, a
Sociedade e a nossa própria vida particular e cotidiana. Significa o desafio
negar a fusão do conceito com a realidade e também enfatizar a interação
criativa entre o método, o empírico e o teórico, entre o sujeito, o cotidiano e
o conceito.
Olhando desse
modo estaremos livres para pensar e viver de comum acordo com a realidade,
inclusive ousar falar da vida de outro modo, sem medo da inquisição científica,
religiosa ou social.
Uma dessas
ousadias é a de questionar a visão clássica da vida, pois são muitos os
estereótipos, as "verdades", os fanatismos e os preconceitos a
respeito, dificultando a abertura para novos olhares e novos caminhos. Neste
caso, seria passar de um enfoque epistemológico tradicional a um enfoque da
complexidade e da mística - processo, incerteza, totalidade, beleza e
sacralidade.
Capra (1997),
quando fala de Ecologia Profunda (expressão criada por Arne Naess,
filósofo norueguês), no seu livro A Teia da Vida, fala de uma percepção
complexa e sistêmica da vida, na qual o ser humano não está no centro. Como
Naess, ele diferencia Ecologia Rasa de Ecologia Profunda e estabelece, também,
diferenças entre o que chama de Ecologia Profunda e Holismo. Lovelock (1987),
Margulin (1986) e outros estão na mesma direção no ato de compreender a vida
como algo maior.
Francisco
de Assis nos mostrou o irmão Sol e a irmã Lua, o amor incondicional a tudo e a
todas as pessoas (ainda no Teocentrismo medieval). Albert Schweitzer considerou
a vida e o ato de cuidar da vida como a referência maior, Arne Naess nos
brindou com a Ecologia Profunda, John Wheeler nos apresentou o Princípio
Antrópico, inúmeros povos falam de um Universo vivo, os místicos falam algo
assim, James Lovelock nos revela a Terra como Gaya e Rolando Toro nos propôs o
Princípio Biocêntrico. Todos olhando a vida como algo maior.
A história de
civilizações, cosmovisões de inúmeros povos antigos e atuais, novas formas de
Movimentos Sociais, Ecológicos e de Povos originários e nativos,
problematizações científicas, espiritualidade e vivências místicas, nossa
sensibilidade singular frente à vida e a própria Biodança, tudo isso evidencia
que um novo paradigma vem se gestando, ganhando espaço na sociedade. Podemos
considerar que, de algumas décadas para cá, está se adentrando em nossas vidas
e em toda a humanidade, um paradigma que progressivamente vem substituindo a
ideia da razão e do poder como centro da vida social e da existência humana,
por um sentimento de vida, evidenciando aí o Amor. Traz a Vida como a
referência maior.
Em
nossa compreensão, por toda essa leitura e contribuições histórica, mística,
social, cultural, científica, temos de considerar que estamos diante do
Paradigma Biocêntrico, o paradigma de um novo mundo humano, o qual nos leva a
sentir e perceber o viver como algo maior, o grande acontecimento da nossa
existência, sendo a Vida totalidade sensível, organizadora, criativa,
inteligente e sagrada.
Isso
nos leva a novos sentimentos e a uma nova compreensão do Universo e das nossas
vidas, numa perspectiva imanente-transcendente, pano de fundo de toda
materialidade. Significa que a Vida não vem da matéria, ela é a estrutura-guia
do Universo, do humano e da cultura. Nesta perspectiva advém a possibilidade de
outro modo de viver, de novos valores, de uma profunda mudança individual e
social que integra natureza e cultura, imanência e transcendência.
O
Paradigma Biocêntrico surge de outros paradigmas que marcaram a humanidade ao
longo de seu processo civilizatório. Do ponto de vista Ocidental, segundo
Almeida ( ????), tivemos nos primeiros milênios da humanidade a visão cosmocêntrica,
depois a teocêntrica, até aparecer no Século XVII a visão antropocêntrica, que
predomina ainda hoje. No Oriente a visão monista, diferentemente da
teocêntrica, se atinha à consciência e ao Todo, não como Deus, mas como, por
exemplo, o Tao e a relação com o humano.
No período
cosmocêntrico, que durou, hegemonicamente, por volta de 40.000 a 5.000 anos
antes de Cristo (do homo sapiens à cidade de Ur), encontramos o ser humano
primitivamente confuso, fusionado e depois governado por forças naturais
simbolizadas deuses, como o sol, a lua, os planetas, tudo no firmamento e em
toda a natureza circundante revelavam-se encantados, mágicos, sagrados e
detentores da vida humana.
No teocentrismo
já não são as forças da natureza que reinam e dominam o ser humano, mas sim um
Ser maior, espírito onipotente, onisciente e onipresente, criador do Universo e
de todas as criaturas. É o Deus de Abraão, Moisés e João Batista, que se fez
homem em Jesus. Período compreendido entre Ur e a Renascença (4000 AC a 1600
DC). Inclui o Velho Testamento e o Novo Testamento, o Judaísmo, o Cristianismo
e o Islamismo.
De 1600 DC aos
dias de hoje temos o antropocentrismo, o homem em sua razão é o centro do
Universo, substitui Deus, passando a ser a referência principal para o novo momento
civilizatório. Razão e poder; construção experimental do conhecimento,
considerando as coisas da religião (fé) separadas das coisas da ciência
(matéria); multiplicação de escolas e universidades; redução e controle da
natureza; avanço da nova ciência (moderna); organização racional do trabalho;
desvalorização da fé, do místico e dos sentimentos de amor e vínculo;
transformação do mundo em objetos e mercadorias e distanciamento do convívio
com o natural; criação do Estado Moderno; destruição da natureza e
enaltecimento do urbano, da inteligência, da tecnologia e do industrial;
aumento da expectativa de vida; explosão do individualismo e do consumismo;
tudo isso, constitui a sociedade moderna com sua ordem social baseada em um
Estado de Direito.
A partir da
década de 60 do Século XX, o Movimento Hippie, os movimentos ecológicos, os
novos movimentos sociais, vários cientistas, artistas e espiritualistas,
afirmaram o Paradigma que tem por base a Vida, denominado por Rolando Toro na
década de 70 de Princípio Biocêntrico.
E hoje, cada vez
mais, surgem outras vozes, como a de Leonardo Boff ao falar de uma sociedade
referenciada na vida; Boaventura de Sousa Santos tratando de uma sociedade
biocêntrica; as constituições da Bolívia e do Equador legalizando Pachamama e
os direitos da Natureza.
Há uma crescente
preocupação e efervescência com relação ao novo paradigma, que tem sua mais
importante sistematização no Princípio Biocêntrico formulado por Rolando Toro
em sua teoria sobre o dançar a vida - Biodança.
A vida como
referência maior nos leva à outra forma de humanização, à sensível e profunda
coexistência e à sacralidade do mundo. Amplia a consciência, revelando inúmeras
possibilidades do viver, possível de acontecer por meio de um cultivo
biocêntrico, gerador de uma cultura que emerge ano a ano no Planeta Terra,
nossa moradia ecológica – a Cultura Biocêntrica.
Para civilizações antigas e inúmeros povos
originários que resistem até hoje, para vários místicos e cientistas (inclusive
da Física e da Biologia) e, especialmente, para Rolando Toro, tudo no Universo
está vivo, coexiste e está relacionado com um princípio maior – a Vida. Isso
implica dizer que a matéria surge de um princípio organizador que cria e recria
o mundo, guia o Universo, mediante processos sutis e complexos de combinação,
recombinação, simetria, assimetria, caos, ordem, vazios, coerências,
incoerências, temporalidade, espacialidade, fora do tempo e fora do espaço,
conectividade visível e invisível, paradoxos, bifurcações, impermanências, presença,
harmonia, colapsos, rupturas, beleza, entropia, neguentropia e “ação
fantasmagórica à distância” (Einstein falando sobre a ação não-local).
Essa
é a dança da vida, uma empolgante sinfonia que a consciência ampliada é capaz
de captá-la brotando e se manifestando em pulsação, diversidade e
conectividade. O ser humano é capaz de sentir e perceber essa misteriosa,
poderosa, sutil, bela e solitária abstração sensível, esse princípio harmônico
de caos-ordem, vazio, transcendente, organizador, criativo e inteligente.
La fuerza que nos
conduce
es la misma que
enciende el sol,
que anima los mares
y hace florecer los
cerezos.
La fuerza que nos
mueve
es la misma que
agita las semillas
con su mensaje
inmemorial de vida.
La danza genera el
destino
bajo las mismas
leyes
que vinculan la
flor a la brisa.
Bajo el girasol de
armonía
todos somos uno.
(Rolando Toro, 1991)
Consideramos,
nessa nova e antiga percepção da vida, o Universo uma teia inacabada, explícita
e implícita de consciência, sensibilidade e informação, que se organiza e
evolui em função da vida. Ele se complexifica
através de sua própria diversidade e conectividade local e não-local, e evolui
por si mesmo mediante relações pouco conhecidas, principalmente entre
gravitação, eletromagnetismo, força nuclear forte, força nuclear fraca, vazio
quântico e energias sutis. É a Dança de Deus.
Se Deus não joga
os dados ou se Deus joga os dados, isso não é o principal, pois as duas
questões são aspectos diferentes da mesma complexidade e sutileza. Concordamos
com Raúl Terrén e Rolando Toro quando dizem que "Deus joga os dados e
sempre ganha", quer dizer, desconhecemos as trajetórias da Grande Dança,
mas o resultado é neguentrópico, belo e misterioso.
A compreensão de
um Universo que se organiza para favorecer a vida, numa dança sutil de caos e
ordem, pode parecer sem sentido, ambiciosa, entretanto, estudos recentes (LOVELOCK,
1991), voltados para uma Ciência da Vida, apontam na direção de uma visão mais
profunda da vida, como algo mais complexo, sistêmico, auto-regulável e capaz de
manifestar-se como um Planeta-Vivo (Gaia).
A percepção da
Terra, ou do Universo, como ser vivo, é antiga, vem dos pré-sumerianos. Ciência
e Religião trataram o tema de maneira diferente depois de Galileu, porém, na
fase atual do conhecimento científico e do resgate da antiga religiosidade
(Tradição), nos encontramos frente à profundas convergências entre elas acerca
do macro e do microcosmo (CASSÉ & AUDOUZE, 1991). Hoje podemos dizer que a
noção de vida como algo de dimensão planetária ou cósmica está presente na
Ciência, nas experiências místicas e na vida comum de qualquer pessoa sensível.
Investigar e abrir-se a essa presença, a essa estrutura-guia, é o grande
desafio que nos deslocará para novo paradigma, o biocêntrico, o qual ultrapassa
o panorama holístico, a tendência de o todo se manifestar na diversidade e
esta, por conseguinte, revelar em sua potencialidade o todo. Este novo
paradigma vai além, se manifesta em um sentimento sagrado do Universo, de todas
as coisas existentes, sentimento este que tem como origem a vivência
biocêntrica.
O entender que
isto é assim ultrapassa os limites das formas atuais de pensar e se aprofunda
na vivência mesma do ser em sua viagem pelo mundo de si mesmo, no qual se
encontra a unicidade do espaço interior com o espaço exterior (CAMPBELL, 1991).
Tal clareza vem da vivência imanente-transcendente da identidade pessoal e de
tudo o mais.
3.3. PARTICIPAR E TECER A VIDA
Para onde nos
leva esse novo modo de sentir e perceber a vida, o Paradigma Biocêntrico? A uma
abertura existencial que nos impulsiona a participar e tecer a vida no
aqui-e-agora social com amor. Leva-nos a construir, no dia-a-dia, sentimentos e
valores pró-vida, uma cultura biocêntrica, mesmo sabendo que, para muita gente,
isso é apenas mais uma das utopias de quem não tem o que fazer, de sonhadores.
Mas, para muitos outros, que têm o que fazer, o sentido da vida está aí.
Aos poucos (é a
nossa esperança e a nossa luta), um novo (e antigo) sentido do humano e da vida
poderá prevalecer sobre a cultura da fragmentação e do individualismo, assim
fortalecendo uma cultura da vida que, por sua vez, aprofundará este sentido nos
corações e nas mentes das novas gerações.
A emergência do
amor e a manifestação de novos sentimentos e valores impulsionam o Século XXI
para a direção de uma sociedade biocêntrica, embora saibamos da existência de
graves obstáculos à sua semeadura, cultivo e colheita, tais como o
racionalismo, a ideologia masculina, a xenofobia, o preconceito social, o
fascismo, o neoliberalismo, o fanatismo e as relações de dominação e
exploração.
Estamos
navegando em complexos sistemas de comunicação, poderosas redes informáticas
que revelam, mediante a tecnologia da computação, o quão fazemos parte e nos
movemos em uma tecitura maior, em um fluxo, em uma rede, onde o particular
contém o universal e este o particular, e muito mais. Fala-se da aldeia global,
de globalização, como uma grande novidade inevitável. A aldeia global, a nossa
casa Terra, é óbvia, não do ponto de vista do neoliberalismo e do seu
"merchandising" (falso livre-mercado, falsa competição - basta ver o
sistema de vigilância estados-unidenses Echelon,
que se utiliza para isso dos satélites Intelsat), que nos impõem uma realidade
fabricada e controlada pela ideologia imperialista constantemente atualizada.
A nossa casa
Terra emerge de um sentimento sagrado, biocêntrico, sendo um novo parâmetro
para nos localizarmos e nos movermos no mundo, mover-se na direção de outros
povos e nações a partir do reconhecimento e do valor das diferentes culturas.
No caso, do Brasil, tomar como referência não o Norte (nortear) ou o Oriente
(orientar), mas sim o Sul (sulear); não a estrela Polar ou a "Estrela dos
Reis Magos", mas sim o Cruzeiro do Sul, conforme proposição de Campos (apud FREIRE, 1994, p.219). Polaris é importante para o Hemisfério
Norte, porém, para o Hemisfério Sul, o que precisa valer de fato é o Cruzeiro
do Sul. Assim haverá integração e não dominação, não um sobre o outro, pois no
espaço não há o em cima nem o embaixo, nem um lado nem outro lado, a não ser
que convencionemos a partir de um referencial, e este pode mudar para se tornar
múltiplo. Em vez de darmos as costas para o Cruzeiro do Sul e ficarmos de
frente para a Estrela Polar, como é comum desde a escola primária, a fim de nos
situarmos no mundo e reconhecermos o lugar onde estamos (no caso, América do
Sul, Brasil), em vez de negarmos ou mesmo substituirmos nossa história, nossa
cultura, nosso valor, por outros próprios do Hemisfério Norte, necessitamos
ficar de frente para o Sul, para o Cruzeiro, pois assim poderemos olhar o mundo
e a nossa casa a partir do que realmente somos, diferentes e semelhantes -
humanos.
Posicionados
desse modo, podemos dialogar, conviver, criar e transcender. Sul, Norte,
Oriente e Ocidente, todos em uma roda de diálogo e convivência, dançando a
diversidade e superando a padronização cultural e ideológica da globalização,
que tanta exclusão social gera, inclusive nos países do Norte.
Nosso mundo
continua sendo um lugar de contrastes perversos (desigualdades sociais e
dominação), apesar de contar com sofisticados sistemas de conhecimento, de
direito, de produção, de transportes e de comunicação. Mesmo assim, é um mundo
propício à humanização e à Natureza, à Vida, um terreno fértil para a
construção de uma grande roda de etnias em meio à Natureza - uma roda de amor,
de aceitação e de criação em meio às diferenças e semelhanças entre indivíduos
e povos.
Isso ainda é uma
utopia, mas a integração cultural (vivência transcultural do amor) é possível,
desde que participemos ativa e amorosamente da promoção da vida. Esse grande
sonho, já sonhado por muitos que já morreram e por muitos que estão lutando
hoje por ele, em todos os lugares do Planeta Terra, um dia poderá ser
realidade. Ver, por exemplo, a caminhada de Gandhi, Albert Schweitzer, Dom
Hélder Câmara, Martin Luther King, Paulo Freire, Rolando Toro, Edgar Morin,
Carl Rogers, O´Neil, Dragão do Mar, Rigoberta Menchú, Chico Mendes, Nuvem Vermelha,
Nélson Mandela, Isadora Duncan, Leila Diniz, Joana D´Arc, madre Teresa de
Calcutá, Indira Ghandi, Marie Curie, Chiquinha Gonzaga, Frida Cahlo, Cora
Coralina, Patrícia Galvão, Papisa Joana, Maria Tomásia, Bárbara de Alencar e
tantos outros. Ver, também, os movimentos sociais e ecológicos, o movimento dos
povos andinos e da floresta, do Conselho Mundial das 13 Avós, de muitas ONGs e
de tanta gente que desconhecemos e que faz um profundo e amoroso trabalho em
seu cotidiano.
Já começamos a
democratizar a democracia e a reverenciar o Numinoso e a Natureza. A voz dos
que não têm voz, já está sendo ouvida, longe e perto. É voz de coragem, voz de
solidariedade, voz de esperança, voz de amor.
Um sonho como
esse nasce do olhar e do gesto generoso de um guerreiro amante, de um rosto
voltado para as estrelas, de uma nova (e antiga) sensibilidade que permite
captar a beleza da vida se fazendo em cada rosto, em cada ser vivo, em cada
partícula do Universo.
É preciso não se
dispersar, não perder de vista o sonho. É preciso continuar tecendo e vivendo a
vida em suas manifestações mais profundas de amor, espiritualidade, equidade
social e ecologia. Não podemos evitar o rosto da Natureza e da humanidade
diante de nós e em nós, o rosto de cada passante, pois podemos correr o risco
de não mais reconhecê-lo como revelação da vida, do sagrado e da nossa condição
de humano.
A Cultura
Biocêntrica assinala um novo passo que já vem sendo dado por um crescente
número de pessoas em todos os países, que hoje tem a consciência ampliada do
verdadeiro sentido da vida, do humano, da sociedade, do Planeta Terra e do
Universo. Manifestações pela paz, pelo direito à vida, contra as guerras e a
fome, pelo fim da violência, em defesa da natureza, pelo amor, passam a ocupar
cada vez mais o cenário social e político de nossa época. Em meio a tantas
desesperanças o surgimento de novos sentimentos e valores de vida ganha força e
se espalha como questão atual para o futuro da humanidade e do Planeta Terra.
Estamos diante
de um novo aprendizado existencial, de uma nova (e antiga) compreensão do
humano, onde a consciência se aprofunda e se amplia mediante novas práticas de
encontro, educativas, sociais, terapêuticas e espirituais, voltadas para a
construção coletiva e individual de uma sociedade biocêntrica. Novas atitudes,
conhecimentos, outras formas de aprender e se desenvolver, sentimentos e
valores pró-vida semeados e cultivados na escola e universidades, no trabalho,
nas religiões, nas comunidades, nas famílias, nas ruas, nos movimentos sociais
e em instituições de toda ordem.
Dar
as mãos é um profundo e decisivo ato político, ato de amor, como dizia Rolando
Toro (1991).
Autor: Cezar Wagner
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